O relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) sobre insegurança alimentar no mundo que será divulgado hoje é alarmante. Uma em cada sete pessoas em todo o planeta passa fome — e cerca de 6 milhões de pessoas morrem por ano sem ter o que comer. O estudo revela que essa duríssima realidade está presente com maior intensidade nos países menos desenvolvidos, principalmente os localizados na África Subsaariana e no sul da Ásia. E são exatamente essas nações, como Etiópia, Somália, Afeganistão e Uganda, as mais afetadas pelas crises econômicas e de alimentos ocorridas a partir de 2006, de acordo com o relatório “O estado da insegurança alimentar no mundo em 2001”, produzido pela FAO, pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD) e pelo Programa Alimentar Mundial (WFP) e publicado hoje. O Brasil foi um dos poucos países onde a segurança alimentar continuou a melhorar, passando praticamente incólume pela turbulência recente. Segundo o texto, o sucesso se deve às políticas públicas bem-sucedidas.
A alta volatilidade dos preços dos alimentos, que voltou a assustar o mundo desde meados de 2010, fez com que menos pessoas tivessem segurança alimentar — ou seja, acesso a uma alimentação nutritiva, saudável e em quantidade suficiente para suprir suas necessidades. Para continuar a se alimentar, muitas pessoas com menos condições financeiras tiveram que optar por abrir mão de uma refeição ou de certos alimentos considerados menos essenciais, como carnes. Essa situação ocorreu em nações tipicamente pobres e importadoras de alimentos, que têm poucas reservas para crises sazonais e dinheiro insuficiente para continuar a ajudar a população necessitada adquirindo comida mais cara.
De acordo com o relatório, a quantidade de pessoas desnutridas no período de crise estudado se manteve constante na Ásia, em comparação ao período que vai de 2000 a 2002, com crescimento de 0,1%, enquanto, no continente africano, esse duro indicador aumentou 8%. No Afeganistão, onde as comunidades mais pobres gastam até 70% de sua renda em comida, o aumento dos preços tornou insustentável a alimentação das pessoas. “Para milhões de afegãos, essas altas nos preços dos alimentos colocam as necessidades básicas simplesmente fora de alcance”, afirmou, em 2008, o então diretor para a Ásia do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas, Anthony Banbury. A situação no país chegou ao ponto de ocorrerem saques em mercados de farinha da cidade em plena luz do dia. O programa da ONU prestou assistência a 6 milhões de afegãos.
Por sua vez, a região que engloba América Latina e Caribe sofreu uma estagnação em termos de segurança alimentar. “O Brasil e os países do Caribe foram exceções, já que a segurança alimentar nessas áreas continuou apresentando melhora. No Brasil, embora pessoas tenham sido afetadas pelo aumento do preço dos alimentos, políticas públicas, como o Bolsa Família, ajudaram a reduzir o impacto. Além disso, a produção de comida cresceu no país, que é um grande exportador de produtos agrícolas e de carne. Essa capacidade de produção interna do Brasil conseguiu equilibrar os efeitos da alta dos preços”, afirmou o representante da FAO no Brasil, Hélder Muteia, em entrevista ao Correio (leia Três perguntas para).
O relatório da FAO mostra que programas inclusivos como os existentes no Brasil implicam em despesas com as quais muitos
países podem não ser capazes de arcar, especialmente durante uma crise. Por isso, nem todas as nações tiveram a mesma capacidade da sociedade brasileira de conseguir passar pela alta dos alimentos sem aumentar a quantidade de indivíduos desnutridos. “Restringir exportações resulta em uma perda de receitas para o governo e reduz o potencial de agricultores de ganhar dinheiro ao aumentar sua produção devido à alta dos preços. E estoques de comida são caros de manter, o que significa que países pobres podem não ter tido os recursos disponíveis antes da crise para compensar qualquer escassez da produção doméstica”, alerta o texto. De acordo com o material, a China e a Índia estão entre as poucas nações que não sofreram tanto com o maior custo de comida.
Ajuda indispensável
Países dependentes de alimentos importados foram os que mais sofreram com o peso da crise. Além de diminuir a quantidade de comida importada, eles precisaram recorrer à ajuda de outros países e organizações e projetos humanitários. O governo de Burkina Faso, por exemplo, implementou a venda subsidiada de grãos, mas foi forçado a contar com o Programa Alimentar Mundial (WFP) para assistir 600 mil indivíduos no período. Já na Etiópia, o governo, com a ajuda do WFP, conseguiu auxiliar cerca de 800 mil pessoas que passavam fome.
Segundo Muteia, os alimentos que geralmente são os primeiros a ficar com preços mais altos são os cereais, especialmente o milho, o arroz, o feijão, a soja e o trigo. “Isso acontece porque são alimentos básicos, essenciais nutricionalmente”, explicou. “Em função disso, o preço da carne, dos ovos, do leite e de seus derivados também aumenta. Para produzir frango, você o alimenta com milho. A ração para os bovinos contém cereais. Essa situação causa uma reação em cadeia”, detalha o moçambicano.
Muteia ressaltou que os preços dos alimentos voltaram a subir em todo o mundo, desde o ano passado. “Não chegou ao nível de 2008, mas é algo crítico”, advertiu. Dados do Banco Mundial revelam que, apenas entre 2010 e 2011, mais 70 milhões de pessoas começaram a viver abaixo da linha da pobreza. “Certamente, esses 70 milhões vão se juntar aos 925 milhões de pessoas que passam fome no mundo, já que as duas coisas estão interligadas”, lamentou o representante da FAO no Brasil.
Impacto direto
A crise do preço dos alimentos no período entre 2006 e 2008 também atingiu o Programa Alimentar Mundial (WFP), projeto humanitário que visa erradicar a fome e ajudar as pessoas a sair da linha da pobreza. “Todo o planejamento de ajuda alimentar é feito com base em um orçamento. Com a alta e a volatilidade dos preços da comida, o programa acabou sendo afetado”, explica Muteia. O WFP funciona a partir da doação de alimentos de comunidades voluntárias. Devido à crise, o representante da FAO revela que o apoio ao projeto foi reduzido.
O WFP só conseguiu reagir a esse problema em 2008, após obter um crédito bancário de US$ 60 milhões (R$ 106 milhões) para comprar mercadorias e pagar o transporte de alimentos doados. Segundo o relatório, esse crédito foi obtido a fim de prestar assistência às famílias que ficaram em situação ainda mais grave devido à crise.
Três perguntas para Hélder Muteia
Representante da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) no Brasil
Quais os efeitos da crise de preços dos alimentos ocorrida entre 2006 e 2008 na população das nações em desenvolvimento?
Durante a alta dos preços dos alimentos na crise de 2008, os produtos alimentícios registraram os maiores valores nos últimos 30 anos. Isso fez com que as pessoas não pudessem adquirir alimentos para fazer suas refeições normais, especialmente os indivíduos mais pobres. Quem precisava gastar cerca de 60% dos rendimentos em comida foi quem mais sofreu com esse problema. Para lidar com essa situação, algumas famílias preferiram cortar uma das três refeições diárias, enquanto outras optaram por abdicar de certos alimentos, especialmente fontes de proteína e vitamina — como frutas e legumes. Desse modo, elas consumiam essencialmente alimentos básicos, como cereais.
Quais foram os países mais afetados por essa crise? Por quê?
A crise atingiu particularmente os países da África Subsaariana e do sul da Ásia, além de alguns da América Latina, como a Bolívia. Quanto mais pobre o país, mais as famílias e comunidades com menores rendas sofreram. As nações africanas, por exemplo, são produtoras de alimentos, mas também precisam importar grandes quantidades de produtos. Qualquer alteração nos preços afeta a balança de pagamento desses países, aumenta o preço dos produtos nos mercados e, consequentemente, as famílias mais pobres não conseguem adquirir a quantidade de comida que precisam.
Quais medidas os governos das nações afetadas pela alta e pela volatilidade dos preços dos alimentos podem tomar para evitar que os efeitos da crise atinjam mais intensamente a população mais pobre?
Os países mais pobres têm muitas limitações econômicas e sociais, mas podem adotar políticas públicas que ajudem a população a não ficar entre os 925 milhões de famintos existentes em todo o mundo. Na agricultura, deve haver o estímulo para que sejam produzidos mais alimentos localmente. Para isso, é preciso apoiar especialmente a agricultura familiar, fazendo com que essas pessoas tenham acesso a terra, água e tecnologia — é muito importante incluir a tecnologia no setor —; ao armazenamento dos produtos; ao transporte e ao mercado; além de facilitar o acesso ao crédito para os microprodutores. É necessário criar políticas de combate à fome e à desigualdade social, porque muitas vezes o problema da fome é a pobreza, a falta de recursos para comprar alimentos. Temos que nos lembrar da importância da cooperação internacional. Os países mais desenvolvidos devem procurar ajudar os menos desenvolvidos, já que, se uma a cada sete pessoas passa fome no mundo, esse é um problema global. Outro ponto interessante é a cooperação Sul-Sul, como a feita pelo Brasil, que vem transferindo tecnologia para os países mais carentes para ajudá-los a reforçar a produção agrícola local. É necessário, contudo, que haja vontade política para adotar todas essas medidas.
Fonte: Correio Braziliense