Dos rincões miseráveis do Brasil emergiram as vozes de mais de uma centena de mulheres que foram ouvidas por uma pesquisadora paulista preocupada em compreender os impactos do programa Bolsa Família na vida dos 5,4 milhões de beneficiários. Ainda alvo de críticas por vários setores, o programa de transferência de renda é considerado pela socióloga Walquíria Leão Rego como um começo de reparação social do Estado brasileiro para com os mais pobres. “Estas pessoas saíram da miséria absoluta, os índices de mortalidade infantil ficaram mais baixos e isto tem impacto fundamental para um país que se diz minimamente democrático. Conviver com a miséria como o Brasil conviveu por tantos séculos, mesmo depois do fim do regime militar, deveria ser um processo que mexe com todos os brasileiros”, falou em entrevista ao Sul21.
Professora do programa de pós-graduação em Sociologia da Unicamp, Walquíria Leão Rego fez a pesquisa por conta própria, sem apoio financeiro da Unicamp ou do Governo Federal. Financiou as viagens do próprio bolso, agendando as excursões em seus períodos de férias. A seu lado, em parte da pesquisa, esteve o filósofo italiano Alessandro Pinzani, que leciona na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão mais adoecendo. Esta afirmação é algo constatada não só em minha pesquisa, que não é quantitativa, mas pelo Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada], IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], ONU [Organização das Nações Unidas], Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], todos constatam a mesma coisa”, afirma.
Concebida com a finalidade de averiguar se, como e em que medida a nova renda e sua regularidade afetam a vida cotidiana das famílias e, em particular, das mulheres, a pesquisa completa estará disponível no livro Vozes do Bolsa Família, a ser lançado pela Editora Unesp (Universidade Estadual Paulista) no dia 11 de junho. “A remuneração proporciona uma liberdade pessoal. Esta é uma das importantes funções do benefício ser em dinheiro. É diferente se fosse uma cesta básica, onde já é determinado o que a pessoa irá fazer com o recurso e o que ela irá comer”, explica a socióloga.
Na visão da professora, os ataques ao programa federal criado pelo governo Lula são feitas por setores específicos da sociedade e com base em conceitos preconceituosos. Ela não acredita em uso político de seu livro. “Este recente episódio do boato que o programa iria acabar e que levou centenas de pessoas aos bancos em poucas horas mostra bem para os críticos o tamanho da necessidade do Bolsa Família. Por isso, acho pouco provável que alguém queira brincar com isso”, analisa.
Sul21 – O Bolsa Família completa dez anos em 2013, alcançando perto de 5,4 milhões de pessoas e é reconhecido internacionalmente como o maior programa de combate à pobreza. Qual é o impacto real deste programa no desenvolvimento do país, porque ao mesmo tempo, ele segue sendo alvo de críticas?
Walquíria Leão Rego – Criticado por quem? Temos de nos perguntar a quem interessa falar mal deste programa. O principal impacto é perceptível. Uma parte significativa da população da chamada “extrema pobreza” deixou de estar nesta condição. Isto não é pouco. É algo muito importante. Estas pessoas saíram da miséria absoluta, os índices de mortalidade infantil ficaram mais baixos e isto tem impacto fundamental para um país que se diz minimamente democrático. Conviver com a miséria como o Brasil conviveu por tantos séculos, mesmo depois do fim do regime militar isto fez parte do país por muitos anos, deveria ser um processo que mexe com todos os brasileiros. A imprensa, a academia e a sociedade em geral deveriam ser tocadas com isso. O impacto é muito grande para as pessoas que passaram a ter um rendimento regular, apesar de pequeno. É um dinheiro que eles podem contar todos os meses. Eles aprendem a conviver com esse recurso e buscam querer viver melhor. Este programa é o começo de uma reparação por parte do estado brasileiro.
Sul21 – Os usuários conseguem administrar a liberdade de ter uma fonte fixa de renda, o que para muitos deve ser algo inédito?
Walquíria Leão Rego – Administram muito bem. Este argumento de que eles não saberiam administrar é preconceito com os pobres. Quem está endividada é a classe média e os ricos, não os pobres. Quando falo em pobres, me refiro aos cadastrados no Bolsa Família, porque existem pobres que estão na categoria de pobres e não estão vivendo na extrema pobreza. Eles administram muito bem os recursos e em dez anos aprenderam a gerir as finanças como qualquer outra pessoa aprende. A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão mais adoecendo. Esta afirmação é algo constatado não só na minha pesquisa, que não é quantitativa, mas pelo Ipea, IBGE, ONU, Pnud, todos constatam a mesma coisa. Isto deveria estar nas manchetes dos jornais do país. Demonstrar que este programa, mesmo oferecendo um auxílio pequeno, está tornando as pessoas cidadãos de fato. Este programa garante o direito mais elementar: a vida.
Sul21 – Dados oficiais revelam que 70% dos beneficiários adultos são trabalhadores e os estudantes que participam do programa possuem média de aprovação quase 5% maior que a média nacional. Além de ter um índice menor de abandono dos estudos.
Walquíria Leão Rego – Isto acontece pela exigência do vínculo das crianças na escola para receber o benefício, o que é muito interessante, porque mostra o quanto estas crianças estavam abandonadas pelo estado. Porém, também é necessário discutir a qualidade da escola brasileira. A escola pública no Brasil precisa de muito investimento ainda. As crianças que eu estudei vivem em cidades do interior, algumas em zona rural e em periferias de grandes cidades [Recife, Vale do Jequitinhonha etc.]. O benefício também implica o controle da saúde das crianças, mas ainda faltam médicos no Brasil nos postos de saúde destas regiões. O governo federal estuda trazer para o Brasil os médicos cubanos, espanhóis e portugueses, porque os nossos não costumam ir para estes lugares. Isto acontece pela falta de compromisso de certas pessoas com o seu país. Os paulistas, por exemplo, querem fazer medicina na melhor universidade, que é USP ou a Unicamp, para se formar em uma universidade pública. Estudam no ensino público, fazem intercâmbio no exterior com auxílio público e voltam para abrir um consultório na Avenida Paulista e cobrar até R$1,5 mil por uma consulta. Isto é o horizonte típico da classe média brasileira que faz medicina. O compromisso com o povo eles não querem saber. Não adianta oferecer o salário e o benefício que for para estas pessoas porque elas não vão para as regiões de periferia e interior. As crianças que são beneficiadas com o Bolsa Família são abandonadas como cidadãos. O Estado tenta resolver e a classe média vai para as ruas fazer protesto contra os médicos estrangeiros.
Sul21 – Recentemente foi divulgado que 1,6 milhão de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família deixaram espontaneamente o programa. Isto contraria a tese de que elas se tornam dependentes do programa?
Walquíria Leão Rego – Isto sempre foi uma tese preconceituosa. Toda tese preconceituosa é desmentida em pouco tempo. O preconceito é algo estreito. Isto foi desmentido porque este dado revela que as pessoas querem melhorar de vida e, em algumas regiões não há emprego. Aliás, não há nem o que vestir ou que comer. Quem irá oferecer emprego para alguém que vive no sertão? Existe uma ignorância de algumas pessoas sobre a realidade do seu próprio país. Não sabem a geografia do seu país, que dirá a geografia econômica ou informações sociológicas. Então, há muito preconceito e estereótipo por trás destas teses.
Sul21 – A senhora desenvolveu a pesquisa por conta própria, sem apoio financeiro da Unicamp ou do governo federal. Financiou as viagens do próprio bolso, agendando as excursões em seus períodos de férias. Como alcançou a publicação do livro?
Walquíria Leão Rego – Consegui a publicação por meio da Editora Unesp, que é uma editora universitária. As outras editoras não se interessaram pelo meu material. Percebi que teria de ser pela editora universitária e creio que este é o papel mesmo. As editoras comerciais só estão interessadas
Sul21 – Em sua pesquisa, que resultou no livro Vozes do Bolsa Família, foram ouvidas 150 mulheres cadastradas no programa. O que é possível dizer desta experiência de dar autonomia para as mulheres na gestão dos recursos do Bolsa Família?
Walquíria Leão Rego – Nós ouvimos muito mais pessoas, mas selecionamos uma amostragem de 150 mulheres para poder fazer um recorte. O livro é um experimento interpretativo, sociológico e com contribuição para o meio intelectual. Não terá grande reflexo na sociedade que, sinceramente, sei que não irá se interessar em ler meu livro. O que é uma pena, porque pode ser uma oportunidade de a sociedade experimentar conhecimento sobre seu próprio país. O estudo desfaz uma série de estereótipos de que os pobres só querem depender do estado e não querem trabalhar. Quem ler este livro conseguirá aprender alguma coisa. É a minha esperança. Agora, o conceito de autonomia é muito complexo. Tem implicações morais e políticas. O que podemos dizer é que, o fato destas mulheres tão destituídas em suas vidas e em estado de extrema pobreza passarem a ser titulares de cartões de recursos transferidos pelo estado traz certa autonomia. A remuneração proporciona uma liberdade pessoal para as pessoas. Esta é uma das importantes funções do benefício ser em dinheiro. É diferente se fosse uma cesta básica, onde já é determinado o que a pessoa irá fazer com o recurso e o que ela irá comer. Fica imposto a quantidade de comida e o tipo de alimento que ela irá comer. O dinheiro dá liberdade de escolha, com isso elas aprendem a administrar os recursos. É um exercício de cidadania muito maior do que as classes mais abastadas pensam sobre a capacidade dos pobres.
Sul21 – Os homens ficaram ou tendem a ficar para trás neste processo de desenvolvimento que foca nas mulheres, a curto, médio ou longo prazo?
Walquíria Leão Rego – Homens também são pobres, analfabetos ou com mínima escolaridade. O desemprego é geral, não está relacionado com o gênero em determinadas regiões do país. Por séculos o estado abandonou parte do País. É preciso ter esta consciência. Agora, com o Bolsa Família, é que se começou a fazer alguma coisa pelo abandono desta parte da população. O estado decretou há muitos anos a morte civil destas pessoas. Elas não têm voz, a sociedade não as escuta. As pessoas não querem pensar sobre isso ou mesmo esquecem de pensar porque isso as incomoda muito e passa a crescer o preconceito. Os brasileiros conviveram por várias gerações sabendo da existência da pobreza e defendem que a culpa é dos próprios pobres que “não querem trabalhar” ou “são vagabundos”. Se não tivesse existido um programa como o Bolsa Família, pessoas seguiriam morrendo no Brasil, África e em tantas outras nações onde ele foi criado.
Sul21 – Como garantir o desenvolvimento do País após o desligamento do Bolsa Família?
Walquíria Leão Rego – Tem de se avançar muito mais no País em termos de desenvolvimento. No que se refere ao programa Bolsa Família, por exemplo, creio que seja necessário aumentar o valor do benefício. É preciso ter mais oportunidade de acesso ao ensino. A imprensa precisa ser melhor. É necessário que aconteça um conjunto de políticas públicas, inclusive específicas para a realidade destas regiões mais pobres. A educação é feita na escola, com a alfabetização, mas outras formas de formação para estes cidadãos são necessárias. Uma pessoa do sertão aprende a ler, mas segue vendo apenas televisão. Isto não resolve muito. Nós temos de discutir o que é educar. Não é só escola. É ter uma mídia democrática que produza conteúdos que elevem as pessoas. A televisão hoje não dignifica as pessoas. Estamos ainda iniciando um novo processo de formação e transformação no Brasil. Eu citei apenas alguns exemplos aqui, mas temos muito que avançar.
Sul21 – Por ser um dos poucos estudos acadêmicos sobre um dos programas mais importantes para a gestão do PT, e do próprio PSDB, que alega a paternidade do embrião do programa, a senhora imagina que seu livro terá uso político?
Walquíria Leão Rego – Não temo. Este recente episódio do boato que o programa iria acabar e que levou centenas de pessoas aos bancos em poucas horas, mostra bem para os críticos o tamanho da necessidade do Bolsa Família. Eu creio que essa reação das pessoas mostrou a importância que o programa tem na vida delas. Isso mostra o significado dessa bolsa para a população. Por isso, acho pouco provável que alguém queira brincar com isso. Além do que, o programa de fato tomou a dimensão que tomou e se tornou o maior programa do mundo não foi com o PSDB. O programa deles (PSDB) era outra coisa. O que foi feito no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso não tinha a mesma dimensão distributiva e a amplitude do Bolsa Família criado no governo Lula. A transformação social do país por meio deste programa começou, sem dúvida, no governo Lula e agora tem continuidade com o governo Dilma, isso não tem como negar. Se um jornalista quiser fazer investigação sobre isso, é só perguntar para as pessoas nas ruas do Brasil. Isso é um dado de realidade, não tem como mentir ou falsificar a história.
Sul21 – A senhora acredita que a imprensa tem interesse em dar voz aos críticos deste programa de forma sistemática?
Walquíria Leão Rego – De fato, isto é algo recorrente. A desqualificação do governo, das pessoas, do programa, e ao mesmo tempo a não informação sobre o êxito desta iniciativa. Isso é o que mais me assusta, como eles [a mídia] se sentem no direito de não informar o País sobre o que está acontecendo no país? Você não vê isso em outros lugares do mundo. É uma imprensa muito controlada pelos seus patrões, talvez uma das mais controladas do mundo.
Sul21 – A senhora vê com esperança o avanço da democratização da mídia no País?
Walquíria Leão Rego – A própria imprensa hegemônica não quer discutir a democratização, e colocou na cabeça de seus jornalistas – e de alguns intelectuais que ela já produziu – que eles devem escrever que discutir e regulamentar a imprensa é abdicar da liberdade de expressão. Então eles usam essa questão para não discutir que quem não pratica essa liberdade de expressão são eles. Eles recusam o debate e usurpam o direito democrático à informação. As pessoas, de modo geral, não sabem o que está acontecendo. Alguma vez a grande imprensa fez alguma matéria séria sobre o Bolsa Família? Nunca. Pelo contrário, ela difama, mente e distorce. Isso não é jornalismo.
Rachel Duarte, via Sul21