A robustez das evidências científicas sobre a ineficácia da cloroquina e demais medicamentos do chamado “kit covid” não interrompeu a marcha de Jair Bolsonaro para impor a qualquer custo o uso das drogas. Desde março de 2020, após encontrar o então presidente ianque Donald Trump, nos Estados Unidos, Bolsonaro vem distribuindo e gastando recursos públicos valiosos com a difusão do uso de medicamentos ineficazes, deixando um rastro de irregularidades administrativas, normativas e legais.
Já um clássico, o estudo Mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à Covid-19 no Brasil, levantou 3.049 normas federais produzidas em 2020 para constatar a “existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.
O estudo, produzido pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Conectas Direitos Humanos, foi atualizado a pedido da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado Federal. Desta vez, com a participação do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS).
Com base em dados coletados de 03/02/20 a 28/05/21, os pesquisadores chamaram a atenção para a “persistência do comportamento de autoridades federais brasileiras”. Tal atitude ocorre, afirma o estudo, mesmo que “instituições como o STF, o TCU e o MPF tenham apontado, inúmeras vezes, a inconformidade à ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias de gestores federais, assim como o fizeram, incansavelmente, entidades científicas e do setor da saúde”.
Um dos eixos do estudo – atos do governo – detalha as medidas tomadas para promover o uso da cloroquina e demais medicamentos do “kit covid” em larga escala. A linha do tempo se inicia em 25 de março de 2020, quando o Ministério da Saúde anunciou que distribuiria 3,4 milhões de unidades de cloroquina e hidroxicloroquina aos estados e criaria, dois dias depois, um protocolo para dar a droga a pacientes com casos graves.
Mudança de ministro
No dia 1º de abril, Bolsonaro, em entrevista ao apresentador José Datena, afirmou que tinha se reunido com pesquisadores “unânimes” em atestar a eficácia do fármaco. A Nota Informativa nº 6/2020-DAF/SCTIE/MS passou a valer na mesma data, com um protocolo para casos graves que em pouco alterou a Nota Informativa nº 5/2020-DAF/SCTIE/MS, de 27 de março.
Insatisfeito, em 14 de maio, Bolsonaro elevou nas redes sociais a pressão sobre o então ministro Nelson Teich por um relaxamento do protocolo. Teich deixou o cargo no dia seguinte e, em 20 de maio, o interino, general Eduardo Pazuello, satisfez o chefe, inaugurando a defesa do “tratamento precoce”. No entanto, a Nota Informativa nº 09 /2020-SE/GAB/SE/MS389 não foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
O Ministério da Saúde tentou ampliar ainda mais a indicação de cloroquina contra a Covid-19 para alcançar gestantes e crianças, como anunciou a secretária Mayra Pinheiro em 15 de junho. Nascia a Nota Informativa nº 11/2020-SE/GAB/SE/MS, logo substituída pela Nota Informativa nº 17/2020- SE/GAB/SE/MS, cujos traços o desgoverno Bolsonaro tentou apagar da internet.
Em 18 de junho, o site do Ministério da Saúde anunciou a compra de “3 milhões de comprimidos de cloroquina 150 mg, produzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)”. Começava a distribuição da droga para estados e municípios.
Em 11 de janeiro deste ano, Pazuello foi a Manaus, em plena crise de abastecimento de oxigêncio, para o lançamento do TrateCov. O aplicativo, supostamente desenvolvido para auxiliar profissionais de saúde no diagnóstico de Covid-19, servia mais como “empurroterapia” das drogas do “kit covid”.
Na ocasião, a secretária Mayra Pinheiro afirmou que que não usar as drogas indicadas pela pasta era “inadmissível”, enquanto Bolsonaro atribuiu a tragédia em Manaus à ausência dos remédios da sua predileção. Foi desmentido pelo coordenador da UTI do Hospital Getúlio Vargas, que relatou que todos os pacientes haviam passado pelo protocolo do “tratamento precoce”.
Máquina do Estado mobilizada
Em fevereiro deste ano, reportagem da Folha de S. Paulo revelou que Bolsonaro mobilizou pelo menos cinco ministérios, uma estatal, dois conselhos da área econômica, Exército e Aeronáutica para difundir as drogas. O jornal identificou dezenas de atos oficiais nas mais diferentes esferas de governo para garantir a circulação de cloroquina e hidroxicloroquina.
“Distribuir o medicamento virou uma política de governo, com atos dos Ministérios da Saúde, Defesa, Economia, Relações Exteriores e Ciência e Tecnologia. Envolve desde a orientação técnica para o uso até o fornecimento final da substância, passando por isenções de impostos e facilitações na circulação do produto”, afirmaram os autores da reportagem.
Diversas das iniciativas governamentais em prol da cloroquina se tornaram alvo de investigações. Em 25 de janeiro, o ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou a abertura de um inquérito para apurar a conduta de Pazuello na crise sanitária em Manaus. O ministro é suspeito de omissão diante do colapso na cidade.
No dia seguinte, o TCU divulgou o resultado de uma auditoria em que considerou ilegal o uso de verba do SUS para o fornecimento de cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina. O entendimento dos auditores foi de que não havia um aval da Anvisa.
Em outubro do ano passado, uma auditoria do TCU constatou que a produção do laboratório do Exército não levava em conta demanda e planejamento por parte do Departamento de Logística do Ministério da Saúde. A falha tem “potencial de gerar dano ao erário, pois a produção pode exceder à necessidade do SUS e gerar acúmulo e vencimento de medicamentos”, apontou a auditoria. Em nota, o Exército negou a possibilidade.
A PGR também abriu frentes preliminares de apuração, que analisam não apenas as atitudes do ministro da Saúde, mas as de Bolsonaro. Já a Procuradoria da República no DF abriu um processo, na esfera cível, para investigar improbidade na distribuição de cloroquina.
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