No primeiro dia de trabalho em 2021, na terça (5), o presidente Jair Bolsonaro já causou reboliço ao dizer a apoiadores que o Brasil “está quebrado” e que “não podia fazer nada”. Após intensa reação vinda de todos os lados, nesta quarta (6) ele preferiu apelar para a ironia. “A confusão de ontem? Que eu falei que o Brasil estava quebrado? Não, o Brasil está bem, está uma maravilha”, disse a apoiadores, antes da reunião ministerial de última hora que convocou no Palácio do Planalto.
O ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes, que interrompeu as férias para participar da reunião, amenizou as palavras do chefe ao jornal ‘O Globo’. “Ele está se referindo, evidentemente, à situação do setor público, que está numa situação financeira difícil. Porque, depois dos excessos de gastos cometidos por governos anteriores, quando chegou o primeiro governo falando que vai cortar forte, foi fulminado pela pandemia”, garantiu, transferindo para gestões passadas, e para a pandemia do coronavírus, a responsabilidade pelo desastre de sua própria condução – ou falta de – da economia do país.
Bolsonaro conversa com seus apoiadores como se estivesse jogando truco em algum botequim de Praia Grande (SP), onde passou o recesso de fim de ano bolando falsas controvérsias a fim de camuflar a absoluta falta de rumo em que o Brasil se atolou. A inépcia, a falta de projetos e o improviso irresponsável de seu desgoverno afloram a cada impropriedade pronunciada, enquanto Guedes insiste na manutenção da regra do teto de gastos e em sua falácia de que a economia nacional se recupera “em V”.
Embora o Brasil não esteja “quebrado” – nem mesmo durante a sequência de pautas-bomba implementadas em 2015 no Congresso pelos setores derrotados nas eleições do ano anterior – a incompetência da equipe econômica do desgoverno Bolsonaro recai sobre a economia real do país, alquebrada pela ausência de rumo.
“Um país só quebra em casos extremos, com dívida em dólar, e quando não consegue captar para pagar serviço e juros. O Brasil não passa por isso”, afirmou Raul Velloso, especialista em contas públicas, ao portal ‘G1’. Foi o que ocorreu em 1930, durante a Grande Depressão, e nos anos 1980, na crise da dívida externa. Em ambos os casos, o país não dispunha de cobertura para honrar empréstimos em moeda estrangeiras, situação muito diferente da atual, após a virada fiscal promovida pelos governos do PT.
Em 2002, quando Fernando Henrique Cardoso deixou o Palácio do Planalto, as reservas internacionais do país não passavam de US$ 38 bilhões. Em 12 de maio de 2016, quando a presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff foi afastada do cargo, o provisionamento chegava a US$ 376,1 bilhões.
Nesta segunda, as reservas cambiais estavam em US$ 355,7 bilhões, mesmo após o Banco Central liquidar mais de US$ 54 bilhões em dois anos de desgoverno Bolsonaro. Em abril passado, Guedes chegou a manifestar a intenção de lançar mão das reservas para abater a dívida pública, recuando após a repercussão negativa.
Além de acumular recursos cambiais, os governos do Partido dos Trabalhadores também nacionalizaram a dívida pública – e a soma desses dois fatores criou um colchão de segurança para o país.
“Não se trata de um país quebrado. Estamos endividados na nossa própria moeda, diferentemente de situações passadas ou mesmo de países vizinhos que, recentemente, precisaram recorrer a empréstimos externos. A situação é grave porque não há rumo”, ressalta Felipe Salto, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão do Senado Federal.
Mercado quer mais reformas neoliberais
Ministro da Fazenda do governo José Sarney, Maílson da Nóbrega disse que as declarações de Bolsonaro é que podem minar a confiança do investidor na economia e emperrar a recuperação. “Não é papel do presidente fazer uma declaração equivocada e por impulso de que o país está quebrado. O que vai pensar um investidor? O papel do presidente é liderar um conjunto de reformas em articulação com o Congresso para livrar o país desse destino de insolvência interna. E isso requer liderança.”
Em meio ao imbróglio, os porta-vozes do mercado na imprensa corporativa se apressaram em apresentar sua solução: aprofundar a agenda de reformas neoliberais e manter a regra do teto de gasto, o que, na prática, estrangula a capacidade do Estado de investir e fomentar o crescimento econômico com distribuição de renda.
“É óbvio que a gente está numa situação de fragilidade fiscal e, se nada for feito, o país vai quebrar. Mas para evitar esse resultado nada como o presidente da República tomar as medidas necessárias para conseguir aprovar as reformas que evitarão esse quadro definitivo de insolvência”, disse a economista Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman, ao portal ‘G1’.
Entre janeiro e novembro de 2020, as contas do desgoverno Bolsonaro apresentaram um déficit primário de R$ 699,105 bilhões. Foi o pior resultado para o período, na série histórica iniciada em 1997. Com um rombo tão grande, a dívida bruta deve chegar ao patamar de 90% do Produto Interno Bruto (PIB) no acumulado do ano passado.
Em maio de 2016, quando Dilma foi afastada, a dívida bruta do setor público era de 68,6% do PIB. No fim de 2017, após um ano e meio de gestão do usurpador Michel Temer, ela subiu para 74% do PIB. Chegou a 77,2% ao fim de 2018 e sofreu uma queda para 75,8% no fim de 2019, devido à redução das operações compromissadas (venda de títulos) e ao arrocho promovido pelo austericídio fiscal.
PT propõe revogação da Lei do Teto dos Gastos
No fim de setembro passado, o Partido dos Trabalhadores apresentou o seu Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, que propõe, entre outras medidas, a revogação da Emenda Constitucional 95, aprovada pelo Congresso sob Temer em 2018. “É fundamental revogar o chamado teto de gastos, que, se mantido, exigirá um corte expressivo dos gastos públicos já em 2021, quando ainda estaremos em uma situação de enfrentamento dos efeitos da pandemia”, aponta o plano.
A regra do teto de gastos impede crescimento dos investimentos públicos até 2038, e por conta dele a política fiscal de Bolsonaro-Guedes vai impor, em 2021, um corte brutal no Orçamento da União. “O governo vai ter de tirar 8% do PIB do orçamento público, que já vem deprimido e sofrendo sucessivos cortes desde o Golpe de 2016, que tirou Dilma da Presidência da República”, apontou o economista Aloizio Mercadante, presidente da Fundação Perseu Abramo, na ocasião do lançamento do plano.
“Essa armadilha de ortodoxia fiscal é uma armadilha autoimposta. Como tirar R$ 580 bilhões da economia no próximo ano?”, questionou Mercadante. Ele lembrou que esse ajuste já era considerado inadequado em tempos normais, por forçar a redução do investimento público e do gasto social.
O enfrentamento da pandemia exige é um aumento expressivo dos gastos públicos. “A saída da pandemia, que dependerá da coordenação do Estado e da retomada do investimento, ao mesmo tempo em que se fortalecem os mecanismos de distribuição de renda e investimento social, deve seguir exigindo um volume expressivo de recursos a serem gastos pelo Estado brasileiro”, diz o texto do plano. “Diante dessa realidade, é fundamental pensar em medidas que permitam angariar recursos para que estes gastos não sejam financiados exclusivamente por meio de endividamento público.”
O PT propõe então a adoção de medidas tributárias como a contribuição sobre altas rendas, grandes patrimônios e grandes heranças, assim como aumento da tributação sobre os lucros e dividendos, sobre juros de capital próprio, sobre o setor financeiro e extrativista. A ideia dessa reforma tributária que inclui impostos para os ricos busca compor um Fundo Solidário de Combate à Pandemia e Reconstrução do Brasil. “Parte dessas medidas abre caminho para a realização de uma reforma tributária justa, solidária e sustentável”, lembra Mercadante. Esse projeto de reforma tributária está no Congresso e foi apresentado pelos partidos de oposição ainda em 2019.
A Lei do Teto dos Gastos impôs uma ortodoxia fiscal permanente com um teto declinante nos gastos públicos por 20 anos, mas também com a modulação do resultado primário e da regra de ouro. “É preciso substituir o atual arcabouço fiscal ultrapassado, rígido e complexo, por uma regra simples, flexível, que permita ao Estado investir e garantir direitos ao mesmo tempo em que cria um horizonte de estabilidade fiscal no médio e longo prazo”, avaliou Mercadante.
Conforme o plano do PT, em um cenário de contração da produção, da renda e do emprego, agravado pela crise sanitária, mitigar os efeitos da pandemia é responsabilidade pública do Estado. “Momentos fora da normalidade exigem respostas excepcionais”, diz o texto do plano. “Nesse caso, isso significa não apenas a flexibilização de metas fiscais, mas a adoção de medidas como o financiamento e o uso dos recursos da conta de equalização cambial e os ganhos patrimoniais das reservas internacionais para viabilizar o financiamento dos gastos necessários ao enfrentamento dos efeitos da Covid-19.”
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