O ano era 2010. Ao chegarem do trabalho, Léo Ribas e sua esposa, Dayana Brunetto, descobriram a invasão da residência, em Curitiba (PR), de uma das piores maneiras possíveis. Ao fundo da garagem, as palavras pichadas na parede doeram na alma: “Sapatão tem que morrer”. As duas vítimas entraram para a estatística da violência avassaladora contra a população LGBT, um dado extremamente difícil de sistematizar no país.
As agressões são uma rotina diária daqueles que não se identificam como heterossexuais ou cisgêneros nos boletins de ocorrência, os chamados ‘BOs’. A falta de uniformidade nos formulários, por vezes, limita os registros de agressão e homicídio a pessoas do gênero feminino e masculino.
Apesar da imprecisão nos levantamentos, os números disponíveis já revelam a gravidade. Segundo pesquisa elaborada em 2020, uma pessoa LGBT é agredida no país a cada quase uma hora. Os dados têm como base nos relatos de agressão registrados entre 2015 e 2017 no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde, o SINAN.
O cenário pode ser ao menos amenizado com a atuação mais enfática do poder público. Antes, é necessário identificar as vítimas da violência. Por isso, um projeto de lei apresentado no Senado Federal pretende criar uma ação nacional de coleta de dados da violência contra a população LGBT. Trata-se do PL 4.271/2021, de autoria do senador Paulo Rocha.
“É urgente coletar esses dados e sistematizá-los. Só assim será possível criar políticas públicas eficazes. É preciso pôr fim nessa chaga social que se abate sobre aqueles que têm uma forma de amar e se sentir diferente da cultuada pela sociedade tradicional”, explica o parlamentar.
União dos entes federados
O texto do PL 4.271/2021 prevê a obrigação dos órgãos de saúde e segurança pública na inclusão e organização das estatísticas de violência contra a população LGBT em uma base de dados nacional. A medida vale para o governo federal, estados, o Distrito Federal e municípios.
Pela proposta, os entes federados devem promover estudos e pesquisas, com a perspectiva de orientação sexual e identidade de gênero, a partir das causas, consequências e desfechos das investigações dos crimes. As informações serão inseridas em um sistema unificado, devendo ser feitas avaliações periódicas dos resultados obtidos.
Para Paulo Rocha, o método é fundamental para a criação de políticas públicas eficazes no combate à discriminação e agressões a pessoas LGBT. “Se tal violência desmedida é a nossa triste realidade, os governos não podem ficar inertes. É fundamental tomar atitudes relevantes em relação a esse quadro inaceitável, adotando medidas para investigar e aperfeiçoar os órgãos públicos”, destaca o senador petista.
Falta uniformidade
Entre os principais aspectos que dificultam cruzar dados está o fato de que, apesar de haver um número nacional de denúncias (Disque 100), os registros feitos nos estados não têm um padrão para identificar as vítimas.
Os boletins de ocorrência pela internet são um exemplo. Até o dia 8 de dezembro, enquanto os registros online em São Paulo davam a opção de acesso a uma ‘Delegacia da Diversidade Online’ para situações de LGBTfobia, os do Rio de Janeiro dispõem apenas de diferenciação de gênero como ‘homem’ ou ‘mulher’ nos casos de agressão física.
De acordo Felipe Santos, da coordenação executiva da ARTGAY e presidente do Movimento dos Espíritos Lilás (MEL), a falta de uniformidade na coleta de dados dificulta um levantamento mais preciso da orientação sexual e identidade de gênero das vítimas.
“Há muita resistência dos agentes de segurança de inserirem campos nos boletins de ocorrência para o registro da orientação sexual e da a identidade de gênero das vítimas. Muitos simplesmente ignoram, acham que é uma recomendação menor. Isso acaba dificultando cruzar dados do SINAN para identificar o perfil dos casos de intolerância”, explica.
Violência crescente
Atualmente, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde é uma das bases de dados mais completas sobre o tema. Um estudo das notificações totais de violência registradas no SINAN, evidencia está questão, pois (https://bit.ly/3DC81lt) revelou 24.564 casos contra a população LGBT entre os anos de 2015 e 2017.
Nesse período, os números são alarmantes: houve aumento na violência contra Lésbicas (49,35%), gays (38,5%), bissexuais (101,4%), travestis (77,9%), mulheres transexuais (22,7%) e homens transexuais (29,9%).
As notificações mostram ainda que 69,1% das pessoas eram adultos e 24,4% adolescentes. As pessoas negras sofreram com a intersecção das violências, representando 57% entre adolescentes de 10 a 14 anos.
Quadro pode ser pior
O Brasil é uma das nações mais perigosas para uma pessoa LGBT viver. O país, inclusive, está há 12 anos no topo do ranking dos mais violentos contra transexuais – só nos nove primeiros meses de 2020, foram 124 pessoas mortas.
Léo Ribas, articuladora nacional da Liga Brasileira das Lésbicas – LBL e uma das personagens que ilustra o início desta reportagem, acredita que o cenário de violências pode ser ainda pior atualmente devido à postura do governo federal.
“Vivemos em tempos de um presidente da República que adota o discurso do ódio, da discriminação, que incentiva o povo a pegar em armas e avaliza os agressores. Com esse governo genocida que temos, essas agressões devem ser ainda mais recorrentes”, explica.
Léo afirma que até mesmo o filho já foi vítima de ameaça, mas que ela e a companheira se recusam a fugir.
“Quando ele tinha cinco anos, ligavam pra mim dizendo: ‘sabemos que você acabou de deixá-lo na escola’. Me perseguiam e faziam ameaças não apenas à minha companheira, mas à nossa criança. Nos ofereceram até que nos mudássemos de estado e de identidade, mas decidimos que não, que continuaríamos na luta. Resistiremos sempre”