A igualdade das partes perante o juiz ou igualdade processual, como é chamada, que brota da igualdade perante a lei, como posta no caput do art 5º, da Constituição Federal de 1988, pressupõe obrigatório o tratamento igualitário dos cidadãos perante o Poder Judiciário, para que tenham as mesmas oportunidades de fazer ter validade em juízo as suas razões.
A jurisprudência é o vocábulo jurídico que nasceu no direito romano, que significa a interpretação das normas feitas pelos tribunais para uma jurisdição, o que no caso do Supremo Tribunal Federal alcança o país inteiro.
De certa forma, a aplicação jurisprudencial a sujeitos e casos similares é garantidora da igualdade processual, que não pode ser vista apenas como inferência para a posição das partes em conflito, mas sim que diante da interpretação do direito posto não sejam dadas soluções distintas para casos análogos.
Em uma sociedade assimétrica, em que impera a luta de classes, a igualdade processual, a exemplo de toda igualdade, é uma busca dos que se colocam ao lado da defesa dos trabalhadores, dos grupos e minorias, da população econômica e socialmente excluída, cujos direitos e garantias mais elementares são diuturnamente negados e solapados.
Do acesso à Justiça ao cumprimento das regras do direito de defesa, os princípios processuais do Estado Democrático de Direito são conquistas a ser constantemente afirmadas nos litígios que são postos ao exame de magistrados.
No dia 25 de novembro de 2016, após decisão monocrática do Ministro Teori Zavascki, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decretou a prisão do Senador Delcídio do Amaral, que seria confirmada no mesmo dia pelo plenário do Senado Federal. Escrevi, a propósito disso, um artigo no portal Empório do Direito [1] sobre o erro de ambas as decisões.
Para atender ao ditame constitucional de que parlamentar no exercício do mandato somente pode ser preso em flagrante delito de crime inafiançável, o STF construiu uma tese bastante singular. Decidiu que Delcídio do Amaral integrava uma organização criminosa, nos termos do art. 2º, da Lei nº 12.850, que seria crime permanente, autorizador, portanto, da prisão em flagrante. O crime, que em regra é afiançável, tornar-se-ia inafiançável quando presentes os requisitos da prisão preventiva, conforme dispõe o Código de Processo Penal em seu art. 324, IV.
Resumindo, a tese foi de que crime permanente (integrar organização criminosa) admite o flagrante. Os atos de tentativa de obstrução de justiça são causa de prisão preventiva, logo torna o crime inafiançável.
Delcídio foi “flagrado” em gravação ambiente feita pelo filho do ex-diretor da Petrobras, Bernardo Cerveró, tramando a fuga de seu pai Nestor Cerveró, com o objetivo de que o nome do senador Delcídio e o do banqueiro André Esteves não aparecessem na delação premiada do ex-diretor, em andamento. Citava o senador, na referida gravação, a possibilidade de conversas com ministros do próprio Supremo Tribunal Federal.
No dia 18 de maio de 2017, o ministro Luiz Edson Fachin determinou o afastamento do deputado Rodrigo Costa Loures e do senador Aécio Neves, presidente do PSDB, de seus mandatos, negando, contudo, os pedidos de prisão feitos pelo Ministério Público Federal.
E aqui começa o problema de diferença substancial de tratamento, haja vista que Aécio Neves fora denunciado pelos mesmos crimes que Delcídio do Amaral, acusado de solicitar e receber de Joesley Batista, do Grupo J&F, propina no valor de R$ 2 milhões, e por obstrução da justiça ao tentar impedir as investigações da organização criminosa da Operação Lava Jato.
Havia, também, nessa hipótese como naquela, uma gravação ambiental feita pelo empresário Joesley Batista ocorrida no mês de março do corrente ano, provavelmente em 24/03/2017, no Hotel Unique, São Paulo-SP em que ele e o senador negociaram o valor em pagamento parcelado.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, recorreu da decisão do ministro Edson Fachin que negou as prisões argumentando justamente que o caso é idêntico ao do senador Delcídio do Amaral. Não apenas não houve julgamento pelo Pleno no tocante à prisão pedida pelo órgão ministerial, como o Ministro Marco Aurélio Mello, no dia 30 de junho, revogou o afastamento do mandato do senador Aécio Neves, revendo a decisão do ministro Fachin.
Não há, na legislação brasileira, autorização para que o Poder Judiciário, seja o STF ou qualquer tribunal, afaste um membro do Poder Legislativo do exercício de seu mandado.
O que foi feito com o ex-deputado Eduardo Cunha em maio de 2016 pelos 11 ministros que compõem o Pleno do Tribunal, a pretexto de ser uma medida “excepcional”, fora agora adotada e revista em medidas liminares. O ativismo judicial em sua forma mais perigosa, extrapolando os limites da repartição de poderes.
Nessa exata medida, é correta a decisão que repôs o exercício do mandato parlamentar do senador Aécio Neves, de que somente pode dispor o Senado Federal.
Infelizmente, o que ocorre no Brasil é o sistema de justiça funcionar bem para a defesa de direitos de alguns e perseguir implacavelmente outros. E para os que o sistema deixa de funcionar corretamente, surgem decisões e argumentos esdrúxulos e abusivos, que jamais poderiam ser usados em uma democracia.
Esse casuísmo que descamba para a parcialidade explícita é que faz com que decisões corretas sejam questionadas pela população, porque dadas aos privilegiados do sistema, o que no caso político, se apresentam os representantes da classe dominante, dos grandes grupos empresariais, dos interesses do capital.
Desse modo, a decisão de Marco Aurélio, juridicamente correta, soou como troça e escancarou que existem pesos e medidas distintos na análise do poder Judiciário de fatos e circunstâncias idênticos, a depender de quem é o investigado ou réu.
Como afirmou o professor Pedro Serrano, em artigo publicado no portal Justificando destes sábado (1/7): “A decisão me parece correta e adequada a Constituição. O que causa desconforto, numa perspectiva panôramica das medidas penais contra políticos, é uma aparente seletividade na aplicação da Constituição e seus direitos, são aplicados para uns e não para outros”.
O caso do ex-presidente Lula é o mais emblemático quando se trata de descumprimento pelo Poder Judiciário das regras do devido processo legal, e de agressão ao direito de defesa e aos princípios democráticos.
Desde que fora impedido pelo Ministro Gilmar Mendes, por decisão liminar totalmente descabida, de tomar posse como Ministro-Chefe da Casa Civil – medida nunca julgada pelo Plenário ainda que presentes todos os critérios de relevância e urgência – já passou por várias provações do ativismo judicial e parcialidade declarada.
Aliás, nunca é demais lembrar, a propósito do já aqui relatado, que o senador Delcídio do Amaral ficou preso durante 85 dias, só saindo quando concordou em fazer delação premiada afirmando que o ex-presidente Lula “mandou pagar Cerveró”.
E foi esse depoimento que levou o juiz Ricardo leite, de Brasília, a proferir decisão de fechar o Instituto Lula no dia 09 de junho último, véspera do depoimento do ex-presidente em Curitiba.
Na operação Lava Jato coube ao ex-presidente Lula provar sua inocência – em clara inversão do ônus da prova – para mostrar que não é proprietário de um imóvel de que o acusa o Ministério Público Federal do Paraná, não estando descartada, mesmo assim, a possibilidade de sofrer uma condenação injusta e ilegal, haja vista já ter ficado cabalmente demonstrado que o juiz da causa assume postura totalmente parcial.
Afora as desnecessárias declarações de apreço pelo senador Aécio, que soaram panfletárias e bajuladoras, a decisão do Ministro Marco Aurélio Mello possui lições doutrinárias, que devem ser adotadas pelo STF e pelo Judiciário de todo o país em absolutamente todos os casos.
“Paga-se um preço por viver-se em um Estado de Direito. É módico e está, por isso mesmo, ao alcance de todos: o respeito irrestrito às regras estabelecidas”
(…)
“Quando o Direito deixa de ser observado – e por Tribunal situado no ápice da pirâmide do Judiciário: o Supremo -, vinga o nefasto critério da força, e tudo, absolutamente tudo, pode acontecer” (grifos meus) [2]
Sim, quando o Direito deixa de ser observado e temos procuradores e juízes que se comportam como justiceiros e algozes, o caminho da democracia vira uma estrada incerta, o processo penal transforma-se em espetáculo, com torcidas de ambos os lados, perdendo qualquer racionalidade e intenção de busca da verdade.
No nosso paradigma constitucional, o julgamento só encontra sua legitimidade quando construído e instaurado com a máxima observância dos princípios da reserva da lei e do devido processo.
Acrescento eu ao meu ex-professor e ministro do STF que a parcialidade dos magistrados, cada vez mais latente em suas condutas e exposta em suas decisões, incluindo os que compõem a mais alta Corte do país, possui iguais riscos de, ao desrespeitar as regras e tratar desigualmente os que se colocam diante de seu crivo, colocar em risco as conquistas civilizatórias que constituem os pilares processuais no Estado Democrático de Direito.
[1] http://emporiododireito.com.br/dois-erros-nenhum-acerto-a-apreciacao-da-prisao-do-senador-delcidio-do-amaral-no-senado-federal-por-tania-m-s-oliveira/
[2] http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/30/juristas-apontam-casuismo-em-decisao-acertada-sobre-mandato-de-aecio/