A capital financeira do país está se transformando na capital da fome. Matéria da BBC Brasil ouviu pessoas que recebem e distribuem doações de alimentos em São Paulo para avaliar o impacto da pandemia do novo coronavírus no acesso da população mais pobre à comida na cidade mais rica do hemisfério sul.
Padres, rabinos e voluntários concluíram que cada vez há mais e mais famílias pedindo comida. E nem todos são moradores de rua. Vítimas da precarização do emprego gerada pelas sucessivas “reformas trabalhistas” nefastas dos últimos anos, entregadores e pessoas que trabalham na região central da cidade aguardam até por mais de uma hora por um prato de comida.
“Não é mais só o pessoal de rua. A gente está percebendo que muitas pessoas passam para buscar por estarem desempregadas e estarem com fome. Ontem mesmo um senhor me disse que trabalhou o dia inteiro sem comer e que estava nos esperando para pegar uma marmita que seria a única refeição dele”, disse o padre José Mario Ribeiro, da Paróquia Nossa Senhora da Conceição (Tatuapé), na Zona Leste da capital.
O padre, que entrega 1.400 marmitas todas as segundas na praça da Sé, conta que se houvesse mais doações e voluntários para produzir as refeições, acabariam todas. Há pessoas que chegam a pedir uma marmita extra para levar para a família. Segundo ele, hoje o número de refeições é sete vezes maior que no início do ano. “Antes da pandemia, a gente doava cerca de 400 a 500 marmitas. Se a gente fizer duas mil hoje, acaba tudo.”
Não é mais só o pessoal de rua. A gente está percebendo que muitas pessoas passam para buscar por estarem desempregadas e estarem com fome. Ontem mesmo um senhor me disse que trabalhou o dia inteiro sem comer e que estava nos esperando para pegar uma marmita que seria a única refeição dele
A 300 metros da praça da Sé, padres franciscanos e voluntários distribuem todos os dias na hora do almoço 1.200 refeições e outras 1.200 no jantar no largo São Francisco. Além de outras 300 marmitas no Glicério e 400 refeições no chamado Chá do Padre. Segundo o frei João Paulo Gabriel, o início da pandemia, em março, marcou o começo de uma explosão de pessoas em busca de comida no centro de São Paulo.
“Quando decretaram a pandemia, as pessoas pararam de fazer doações na região e o povo que já conhecia o nosso serviço foi nos procurar na rua Riachuelo, onde funciona o Chá do Padre. Mas a gente não estava preparado. Não tinha cozinha, voluntários, mas conseguimos a liberação para montar uma tenda a céu aberto”, contou o frei da Tenda Franciscana.
“A gente tinha um público 100% de população de rua, mas ele foi mudando. Hoje há muitas pessoas que vivem em ocupações, gente que tem casa e não tem condição de comprar uma refeição. São pessoas que faziam bico e não tem mais, que não tem mais carteira assinada. Tem pessoas desesperadas imaginando como vão sobreviver quando terminar o auxílio emergencial”, afirmou.
“Hoje estamos preocupados, com uma demanda crescente por comida. São mais e mais famílias pedindo, principalmente os idosos que não conseguem cozinhar. E precisamos de mais pessoas sagradas para nos ajudar”, afirmou o rabino Berel Weitman, vice diretor-executivo da Ten Yad.
Insegurança alimentar grave
No Brasil, a fome havia caído 82% de 2002 a 2013, mas voltou a subir nos últimos anos. Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que 10,3 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave. O total de brasileiros que passam fome cresceu, segundo o órgão, em três milhões de pessoas em cinco anos.
A pesquisa, divulgada em setembro, se refere aos anos de 2017 e 2018. Ela aponta que o total de pessoas com alimentação em quantidade suficiente e satisfatória no Brasil é o mais baixo dos últimos 15 anos. A conta não inclui pessoas em situação de rua.
A insegurança alimentar grave no Brasil é registrada principalmente em áreas rurais: 23,3% da população urbana passam fome, enquanto 40,1% da população rural atravessam a mesma situação. Ainda segundo o IBGE, quanto mais moradores viverem em um domicílio, maior será a chance de haver fome ali.
Em 2014, quatro anos antes da coleta dos dados agora divulgados, o Brasil havia saído oficialmente do Mapa da Fome das Nações Unidas, em uma conquista aplaudida pelo mundo inteiro. Em 2018, dois anos após o afastamento da presidenta legitimamente eleita Dilma Rousseff, voltou a ser incluído.
Em entrevista à BBC Brasil, Kiko Afonso, Diretor Executivo da Ação da Cidadania, fundada pelo sociólogo Betinho (Herbert de Souza) em 1993 para combater a fome e a miséria no país, disse que os números da pesquisa não surpreendem.
“A gente sabia da dimensão das famílias que estavam nos pedindo alimento em vez de educação, saúde, etc. Quando a pessoa abre mão desses outros direitos para pedir comida, é porque a situação realmente está muito grave”, diz Kiko Afonso. “Infelizmente, especialmente no Brasil, esses problemas que são dramas, não são tragédias, têm pouca visibilidade.”
Segundo ele, a política agrícola brasileira se orienta para as exportações. Para ele, isso pode ser “bom para a balança econômica, mas é péssimo para o consumo local, principalmente para as populações mais vulneráveis”.
“Você soma dois grandes fatores: uma política de governo que olha para o agronegócio e a exportação em detrimento do pequeno produtor, o que encarece o alimento, e uma segunda vertente de desigualdade social absurda, onde grande maioria da população vive com um salário abaixo de uma média aceitável para se sobreviver. Os dois elementos em conjunto geram uma diminuição do poder de compra das famílias e obviamente dificuldade para a aquisição de alimentos.”
Terceiro maior produtor de alimentos do planeta, segundo exportador mundial de alimentos industrializados em volume e o quinto em valor, o agronegócio brasileiro representa mais de 60% da balança comercial do país. Mas, segundo o último censo agropecuário do IBGE, é a agricultura familiar a responsável por 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros.