No estica e puxa pelas verbas do Orçamento da União de 2021, o Censo Demográfico 2020, adiado para o próximo ano devido à pandemia do coronavírus, pode ficar para as calendas. A intenção do governo é desviar a verba que seria destinada ao Censo – R$ 2 bilhões – para reforçar o orçamento do Ministério da Defesa e outras pastas.
Pelo menos em duas ocasiões nesta semana (segunda e terça), o presidente Jair Bolsonaro ordenou um acréscimo de R$ 2,27 bilhões ao limite de gastos para os militares, sem bloqueios – como neste ano. Caso a expansão determinada por Bolsonaro predomine no projeto de Orçamento de 2021 a ser enviado ao Congresso até o fim deste mês, o Ministério da Defesa terá disponíveis R$ 111 bilhões, ou R$ 8,1 bilhões a mais do que os R$ 102,9 bilhões planejados para o Ministério da Educação.
Segundo o jornal ‘O Estado de São Paulo’, o comunicado da ampliação do Orçamento para os militares foi feito em ofícios pelo secretário de Orçamento do Ministério da Economia, George Soares. O valor deve cobrir desde gastos com o fardamento da Marinha até programas estratégicos das Forças Armadas.
O tema já havia sido levado para a Junta de Execução Orçamentária (JEO), que define as diretrizes para a execução do Orçamento. A justificativa apontada na JEO para enviar o orçamento do Censo a outras pastas será os efeitos ainda da Covid-19 no ano que vem.
O governo já havia gasto com os preparativos da pesquisa, que coleta dados na casa de todos os brasileiros. Quando o adiamento do Censo foi anunciado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) cancelou o processo seletivo aberto para a contratação de mais de 200 mil trabalhadores temporários. O instituto previa atrair mais de dois milhões de candidatos ao concurso público.
As verbas para o próximo ano ainda estão em negociação no governo. Depois, ainda passam por mudanças no Congresso. Deputados e senadores têm direito a emendas que destinam dinheiro para ações dos ministérios. Geralmente os ministérios da Saúde e Educação são contemplados, principalmente pelas emendas de bancadas regionais.
Na guerra pelos recursos, Bolsonaro andou se queixando a deputados aliados de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, deve ser menos intransigente. Para o presidente, Guedes é mais propenso a negociar a liberação de recursos solicitados por deputados e senadores, enquanto é mais rígido quando o pedido é de colegas de ministério.
Apagão de dados
Realizado a cada dez anos, o Censo Demográfico é a pesquisa mais detalhada sobre a realidade nacional. Hoje, o que se sabe da população é com base em estimativa do Censo de 2010. E quanto mais se afasta da base do Censo, mais impreciso fica o dado para a definição de políticas públicas.
Os pesquisados visitam a casa de todos os brasileiros para traçar uma radiografia da situação de vida da população nos municípios e seus recortes internos, como distritos, bairros e outras realidades. Esse nível de minúcia não é alcançado em outras pesquisas do IBGE feitas por amostragem, que entrevistam apenas parcela da população.
A formulação do Bolsa Família, por exemplo, é baseada em informações sobre as famílias que estão em situação de pobreza, levantadas a partir de pesquisas como a Pnad, que traz dados sobre emprego e renda no País. A definição da amostra populacional que será ouvida na Pnad para fazer o retrato mais fiel possível do País é guiada pelos dados disponíveis sobre o total da população – ou seja, pelo Censo.
No caso de divisão de recursos federais, há casos de municípios que recorreram à Justiça para tentar ampliar os valores recebidos da União para políticas na área de saúde, por exemplo. A justificativa é que os dados do IBGE, que só tem conseguido fazer projeções da população, já não demonstram o real crescimento do número de pessoas vivendo em determinadas cidades.
A Pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), Dalia Romero diz que o “cheiro de desmonte” do Censo já é notado desde as discussões sobre a redução do número de perguntas da pesquisa, feita em 2019.
“Estamos vivendo, em várias frentes, medo do apagão estatístico”, disse a cientista. “Se não tiver Censo em 2021, mesmo com limitações, vai ser terrível para todos. Não só para a área social. Para a própria economia será um desastre.”
Romero afirma que o próprio Ministério da Defesa deveria defender a elaboração da pesquisa para ter melhores informações sobre o fluxo migratório na fronteira, por exemplo. “Tomar decisões às cegas é muito ruim ao governo federal”, conclui.
Para Luanda Botelho, coordenadora do sindicato dos servidores do IBGE (Assibge), o censo deveria ser prioridade no pós-pandemia. “É preocupante que IBGE e outras instituições produtoras de ciência estejam sendo preteridas”, lamentou a líder sindical.
Em abril, profissionais da área de informações denunciaram o apagão de dados vivido pelo governo, com impactos negativos na apuração de vários índices de avaliação socioeconômica. “Precisamos que a população entenda que ficar no apagão estatístico diante de uma pandemia é muito ruim, pois as pessoas que estão hoje organizando o combate à epidemia precisam de números”, lamentou Cimar Azeredo, diretor-adjunto de pesquisa do IBGE, ao portal ‘Repórter Brasil’.
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre- FGV), Manoel Pires comparou a situação a uma navegação sem bússola. “Houve uma piora geral de estatísticas do governo federal neste último ano e meio. Isso se deve a desinvestimento, falta de apreço pela informação e às vezes descuido”.
Em outra frente, a Dataprev, estatal responsável por processar todos os pedidos de auxílio emergencial para trabalhadores informais, enfrentou inúmero problemas no início da implantação do programa devido à perda de 600 servidores desde 2019, quando o governo Bolsonaro lançou um Programa de Desligamento Incentivado (PDI).