De 2019 a março de 2022, mais de 400 mil novas armas de fogo foram registradas no país, segundo dados da Polícia Federal para o portal de transparência “Fiquem Sabendo”. Desse total, mais 96% estão em nome de homens e 4% em nome de mulheres.
A insegurança e perigo que as mulheres correm não são apenas “sensações”, mas a prática diária da violência cotidiana que elas sofrem. Segundo a antropóloga, cientista política e especialista em segurança pública, Jaqueline Muniz, as soluções no Brasil tendem a ser violentas, exatamente por essa dimensão desigual da nossa sociedade, que envolve sobretudo a desigualdade de gênero e de raça.
Se considerarmos que mais da metade dos casos de violência contra as mulheres foram cometidas por companheiros, ex-companheiros, pais ou padrastos e dentro de casa, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, podemos dizer que o grau de escala de opressão, silenciamento e repressão sobre as mulheres sobe à medida que o grau de letalidade dos homens sobre as mulheres também sobe.
“Uma arma na mão silencia muito mais, amplifica as ameaças e aumenta o potencial de letalidade. Não se trata apenas do tanto de mortes que deriva do uso da arma, mas também o quanto essa arma é capaz de produzir violência, sujeição e repreensão no cotidiano”, afirma Jaqueline Muniz, antropóloga, cientista, professora da UFF e especialista em segurança pública.
De 2019 a março de 2022, os estados que mais registraram armas foram Minas Gerais (58.275), Rio Grande do Sul (46.878) e Santa Catarina (34.515). Proporcionalmente, o estado em que mais mulheres registraram armas em relação ao número de homens foi no Amazonas (11%), no primeiro trimestre de 2022. Foram 8 registros de armas feito por mulheres contra 76 registros feitos por homens.
“Protetor” ou potencial agressor?
O percentual de domicílios brasileiros chefiados por mulheres passou de 25% em 1995 para 45% em 2018, segundo dados do IPEA. Estima-se ainda que só entre 2014 e 2019, quase 10 milhões de mulheres assumiram o posto de gestora da casa, enquanto 2,8 milhões de homens perderam essa posição no mesmo período. O avanço do direito das mulheres, sobretudo no campo da autonomia econômica, tirou dos homens a possibilidade de subjugar as mulheres por meio do discurso de “você faz o que eu quero, porque quem paga as contas sou eu”, explicou Jaqueline.
No entanto, diante de uma sociedade ainda marcada pela desigualdade de gênero, eles passam a construir estratégias para manter e ampliar a sujeição da mulher. “No caso do porte de arma, a construção da sujeição é maior porque há um potencial letalidade”. Em outras palavras, eles se apresentam como ‘protetores’ com arma na mão, no entanto cumprem, na verdade, papéis de potenciais agressores.
“A arma de fogo potencializa o reino da violência que já existia [de gênero]. O resultado morte é consequência da competência ou da incompetência de matar, é a ameaça de morte que está em jogo”, explicou a especialista.
A vida das mulheres em risco permanente
No Brasil, 4 mulheres são vítimas de feminicídio por dia, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – cerca de 30% dessas mortes são provocadas por arma de fogo. Mulheres que querem o fim do relacionamento, que não conseguem se divorciar, querem tirar seus filhos de uma situação de violência, simplesmente querem viver em paz, não conseguem porque podem morrer a qualquer momento.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou que o total de casos de violência contra mulher aumentou em todo o Brasil. Em 2020, 1.596 casos foram registrados pelo judiciário brasileiro. Já em 2021, a Justiça contabilizou 1.900 casos de feminicídio.
Só no Estado do Rio de Janeiro, os casos de feminicídio aumentaram 73% nos últimos cinco anos, apontam os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). A juíza Adriana Ramos de Mello afirmou ao G1 que cerca 60% das mortes violentas ocorrem em função do gênero e da raça da vítima.
“Com a flexibilização do uso das armas o medo difuso, latente e contínuo passou a fazer parte do universo das mulheres. Isso faz com que elas não busquem delegacias, se isolem, não corram atrás de recursos, proteção social e sequer usem sua voz nas coisas mais prosaicas do cotidiano, como expressar uma opinião no Uber, no táxi ou fazer valer um direito, por medo de serem mortas”, aponta Muniz.
Elas sabem o que fazer: não reeleger
Pesquisa do DataFolha de maio deste ano apontou que 78% das mulheres rejeitam as armas, sobretudo as pessoas que se autodeclaram pretas (78%) e aquelas que recebem até dois salários mínimos (75%).
A questão do porte de armas é uma das principais causas de rejeição do governo Bolsonaro pelas mulheres – inclusive no setor evangélico, que tende a ser mais conservador.
Ao todo, Bolsonaro editou 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei, todos com o objetivo de facilitar ao cidadão comum o acesso a armas de fogo e munição. Entre as armas mais comercializadas estão as pistolas de 9mm, revólveres e as espingardas.
“Essas medidas baratearam o custo logístico do crime organizado e reduziram o custeio para trajetória criminosa. E nas relações interpessoais, que já são violentas, o armamento introduz mais uma camada de opressão, sujeição e invisibilidade”, ressaltou Muniz.