Graças a recurso apresentado pelo PT no Senado, o Plenário analisará nos próximos dias o chamado PL da Perda de Controle, que elimina a fiscalização pública da produção rural e estabelece o autocontrole, ou seja, delega a fiscalização ao próprio dono da fazenda. O voto em separado que será defendido pelo líder do PT, senador Paulo Rocha (PA), já está pronto. No texto, o partido avalia que a simplificação administrativa ajuda a fomentar a inovação e a competitividade econômicas, mas aponta que acabar com a fiscalização pública da defesa agropecuária vai contra o interesse social e a proteção da coletividade.
O trabalho de inspeção, que serve para verificar o cumprimento da legislação de combate a pragas na lavoura e a doenças na produção animal, assim como para validar os insumos utilizados, envolve poder de polícia administrativa e deve ser exclusiva do Estado, defende o recurso assinado por Paulo Rocha e apoiado por outros nove senadores.
O líder ressalta que a lei atual já prevê a participação do setor privado, por meio do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (Suasa), do qual participam órgãos oficiais, associações, trabalhadores rurais, produtores e também entidades gestoras de fundos privados. O objetivo é complementar as ações públicas de defesa agropecuária. Na avaliação do senador, é preciso considerar os limites da atuação de cada envolvido, “de forma que o setor privado não invada as prerrogativas e atividades exclusivas de Estado, ainda que a pretexto de colaboração”.
Invasão de prerrogativas é exatamente o que propõe o projeto, que, entre outras novidades, permite registro automático de hormônios nas fazendas, sem a avaliação técnica do Ministério da Agricultura (MAPA). Para piorar, o texto impede que o Ministério exija licença ambiental da empresa responsável pela execução do plano de controle de pragas numa lavoura, por exemplo. No caso de um frigorífico, os fiscais públicos teriam que ficar do lado de fora, apenas na função de auditar o cumprimento do plano criado pelo dono do estabelecimento.
O projeto de lei da Perda de Controle (PL 1293/2021) passou pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) de forma terminativa. Ou seja, caso não houvesse recurso, ela iria diretamente à sanção presidencial. Como não requer votação, o recurso apresentado pelo PT deve provocar a entrada da matéria em Plenário nos próximos dias.
Mas, antes da votação, a oposição defende que sejam realizadas sessões temáticas. Ao menos um requerimento já foi preparado, com o apoio de 16 entidades — inclusive ligadas à defesa do consumidor — que desejam debater melhor o tema antes da votação final.
É o caso da ANFFA Sindical, que representa os auditores fiscais federais agropecuários do Ministério da Agricultura (MAPA). Para o presidente do sindicato, Janus Pablo, a tramitação foi atropelada e a sociedade não conhece os riscos que corre. Segundo ele, não se pode aprovar, a toque de caixa, um projeto que retira dos auditores funções estratégicas para garantir a qualidade dos alimentos que chegam à mesa do consumidor. “Além dos riscos à saúde alimentar do país, este projeto abre um precedente perigoso para carreiras de auditoria e fiscalização do governo federal, porque pode ser usado como referência para limitar a atuação de outros servidores dessas áreas”, alerta.
Entre as mudanças propostas, os auditores agropecuários só vão atuar em frigoríficos habilitados para exportação. “Dentro do nosso país, os produtos não terão fiscalização dos auditores”, preocupa-se Pablo. E não sem razão, porque cerca de 70% da carne produzida no Brasil é voltada para o consumo interno. Em audiência na CRA na semana passada, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN) já havia alertado para os riscos à saúde da população caso seja aprovado o projeto bancado pelo governo e feito na medida para beneficiar empresários do agronegócio.
“Você que compra carne aqui no Brasil, no seu açougue, cuidado que não vai ter fiscal. O Estado não vai estar presente para dizer se tem brucelose, tuberculose. Agora, a carne que vai se exportar vai ter sim, e vão ser os vigilantes estatais que vão fazer o serviço. Me preocupa muito essa omissão estatal”, justificou a senadora.
A Austrália, um dos três maiores exportadores de carne do mundo, chegou a repensar, em 2015, sua política de controle agropecuário, que já tinha sido de autofiscalização e que, na época, era mista. Mas o governo daquele país concluiu que seria muito difícil manter a qualidade dos alimentos sem a vigilância do Estado.
Na época, o então presidente da NSW Farmers, organização agropecuária estatal, Derek Schoen, avaliou que não valia a pena economizar os recursos aplicados no controle público sob o risco de afetar a qualidade da carne, a reputação ou o acesso aos mercados. De fato, compradores orientais e da União Europeia não aceitaram importar carne australiana naquelas condições, com o autocontrole dos fazendeiros.