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Comemorar o golpe – cantar e dançar sobre corpos flagelados

Bolsonaro é um adversário da democracia, um inimigo dos direitos humanos e um proponente da violência
Comemorar o golpe – cantar e dançar sobre corpos flagelados

Foto: Mauro Pimentel/AFP

Quando votou favoravelmente ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o então deputado Jair Bolsonaro homenageou a memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único militar brasileiro reconhecido como torturador pelo Poder Judiciário, em sentença proferida em outubro de 2008 pela 23ª Vara Cível de São Paulo, confirmada por unanimidade pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em agosto de 2012, e pelo Superior Tribunal de Justiça, em dezembro de 2014.

Pelos relatos naquele processo e em depoimentos à Comissão da Verdade, sabe-se que o herói de Bolsonaro, dentre outros vários métodos, supliciava mulheres e levava filhos pequenos para assistir a mãe, cheia de ferimentos e hematomas, de vômito e urina.

Por várias vezes, já eleito, ao ameaçar adversários políticos ou servidores públicos, Bolsonaro se referiu a enviá-los à “ponta da praia”, uma gíria usada por militares no tempo da ditadura para se referir a uma base da Marinha na Restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro, local usado para a execução de presos políticos.

Portanto, o que o presidente da República pensa sobre tortura, torturadores e o golpe civil-militar de 1964 não é novidade para ninguém. Que ele gostaria de governar não sob as normas constitucionais, mas sob o império dos tanques nas ruas, sem Congresso, sem Judiciário e sem povo é novidade para o total de zero pessoas.

O que ocorre é que há pouco mais de 30 anos o Brasil vive em uma democracia. Cheia de desacertos, fragilidades e limites, mas, ainda assim, uma democracia.

Desde o primeiro ano de seu governo, Jair Bolsonaro tenta comemorar a data de 31 de março, em que há 57 anos tanques tomaram as ruas do país, generais depuseram um presidente eleito e impuseram uma ditadura sanguinária que calou a democracia, ceifou vidas inocentes e durou 21 anos.

O país mergulhou em um longo e lancinante período de sua história, caracterizado pela supressão dos direitos constitucionais, perseguição política, prisão, tortura e morte dos opositores e imposição da censura prévia aos meios de comunicação, às artes e à cultura.

A diferença desse terceiro ano em que Bolsonaro ocupa a cadeira de Presidente da República com os anteriores é que isso pode acontecer com o respaldo do Poder Judiciário, por decisão de maioria da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

O grande paradoxo no recurso da Advocacia-Geral da União (AGU) à decisão que havia proibido qualquer comemoração ao golpe de 1964 é que usa o argumento de que “o Estado democrático de Direito, posto na Constituição Federal de 1988, pressupõe o pluralismo de ideais e projetos”.

Sim, estamos em tempos em que para render louvor à ditadura e a ditadores invoca-se os preceitos da democracia, conquistados com luta, à custa de muito sangue derramado por eles e apesar deles.

Bolsonaro é um adversário da democracia, um inimigo dos direitos humanos e um proponente da violência.

Mas o problema fica muito maior quando isso acontece com a tutela do Poder Judiciário. Isso porque, ao oferecer guarida para que o governo possa comemorar o sequestro, a tortura e o assassinato de civis por agentes do Estado, juízes nos levam a imaginar a quem devemos recorrer para conter o autoritarismo, e qual o papel das instituições democráticas diante do crescimento dos atos de exceção, que vão buscando se normalizar a cada dia com o respaldo ou a partir de atos do governo federal.

Permitir que o regime que estabeleceu a censura, obrigou ao exílio o presidente eleito João Goulart e muitos cidadãos, incluindo artistas e intelectuais, além de políticos e militantes, seja motivo de comemoração mostra um país de democracia frágil, onde a população não conhece a sua história e as instituições não cumprem seu verdadeiro papel, e podem servir de esteio à conservação de arrumações institucionais autoritárias, característica que possui sua gênese no histórico colonial do país.

Há um enraizamento escravocrata profundo no pensamento de nossa sociedade, que também é renitentemente racista e moralmente covarde. Os indicadores de como chegamos até aqui me parecem estar no fato de que não acertamos as contas com nosso passado. Não enfrentamos como registro os anos em que estivemos sob o julgo dos tanques e baionetas.

A Lei de Anistia foi o preço a pagar e significou o silêncio e a impunidade. Apenas em parte se conseguiu algo nesse sentido durante os governos Lula e Dilma. São muitas as famílias que nunca enterraram seus entes queridos, que constam sob a alcunha de “desaparecidos” nos arquivos oficiais, em atestados de óbito sem data, local de sepultamento ou causa mortis.

Aceitar o negacionismo histórico e tentar fantasiá-lo de respeito a uma leitura divergente diz muito mais sobre os desembargadores do TRF-5 que proferiram a decisão que sobre ela mesma.

O Brasil necessita, de fato, de uma pedagogia cidadã, que consiga refletir sobre o passado. A reprodução da herança colonial e autoritária pelas instituições só será efetivamente vencida por meio da implementação de uma justiça de transição que se afigure como uma política de Estado, não de governos específicos.

Por seu turno, a plena efetivação dos direitos humanos reclama não apenas retórica, mas uma prática intransigente. Uma em que falar de Deus e de armas para exterminar não caibam na mesma frase; em que ousar festejar sobre a memória do sangue de outros seres humanos seja visto como o que é: barbárie.

Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato

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