Comércio e transferência de renda – Por Eduardo Suplicy

Os empresários têm alertado para a crescente falta de competitividade das empresas nacionais que estão perdendo terreno para as importações. Algumas medidas foram tomadas recentemente, como no Programa Brasil Maior, para reverter a situação.

Estudo da Fiesp ressalta que os encargos sociais no Brasil sobre a folha de pagamentos, da ordem de 32,4%, também contribuem para diminuir a capacidade competitiva das indústrias. Perguntei ao vice-presidente da Fiesp, José Ricardo Roriz Coelho, se, além dos encargos sociais, haviam sido considerados os efeitos das transferências de renda existentes nos países desenvolvidos sobre o grau de competitividade de nossas empresas. Ele afirmou que não.

Chamo a atenção tanto de empresários quanto de trabalhadores, assim como do governo, para o fato de que nós, brasileiros, precisamos estar atentos aos efeitos das fortes transferências de renda, que se tornaram cada vez mais importantes em muitos países. Nos Estados Unidos, foi instituído em 1975 o “earned income tax credit” – EITC (crédito fiscal por remuneração recebida), uma forma de imposto de renda negativo que complementa a renda dos que trabalham, mas não alcança um patamar que lhes permita sair da condição de pobreza.

O EITC tem sido significativamente aumentado desde então. O presidente Bill Clinton, que, em sua campanha, em 1992, tinha por mote “as pessoas em primeiro lugar”, aumentou o valor do EITC para as famílias com uma, duas ou mais crianças e estendeu o programa, inclusive para os casais sem filhos. As economias que muito interagem com a americana, como as do Reino Unido, Canadá, México, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Irlanda, Holanda, Nova Zelândia e Suécia, criaram instrumentos semelhantes.

O primeiro-ministro Tony Blair, no Reino Unido, em 2000, criou o “family tax credit” (crédito fiscal para a família). Assim, um trabalhador que em Londres recebesse 800 libras esterlinas por mês passou a ter 50% a mais, de crédito fiscal, e sua remuneração subiu para 1.200 libras esterlinas. O presidente Barack Obama, em 2009, a exemplo de Clinton, também aumentou o valor e estendeu o EITC.

Um casal com duas crianças e renda anual positiva, mas inferior ao patamar de US$ 12.970, tem um crédito fiscal equivalente a 40% de cada dólar que recebe pelo trabalho no intervalo de 0 a US$ 12.970. Se receber US$ 10 mil, o casal terá US$ 4 mil a mais. Se conseguir fazer, por exemplo, US$ 18 mil ao ano, o casal obterá um crédito de US$ 5.160 e sua renda vai para US$ 23.160, o que significa ultrapassar a linha oficial de pobreza nos Estados Unidos, que, para uma família de pai, mãe e duas crianças, está em US$ 23 mil anuais. Se a renda do trabalho do casal continuar a crescer e chegar a US$ 21.970, eles ainda têm direito ao crédito fiscal máximo, de US$ 5.160.

Mas, caso a renda anual do casal continue aumentando na faixa de US$ 21.970 até o limite de US$ 46.471, o crédito fiscal passa a diminuir de 21% para cada dólar adicional, até o patamar de US$ 46.471. Portanto, vai diminuindo à taxa de 21% sobre a diferença entre US$ 46.471 e a renda obtida. A partir de US$ 46.471, se aumentar a renda, o casal passa a ter obrigações de pagamento de mais imposto de renda.

Segundo o Center on Budget and Policy Priorities, o EITC tem contribuído para aumentar o trabalho e o nível de emprego, tem diminuído a necessidade de gastos com desemprego, tem diminuído a pobreza e tem tornado mais justo o sistema tributário. A sociedade americana contribui com impostos para que se aumente a remuneração de quem trabalha.

No Brasil, temos o programa Bolsa Família, que hoje beneficia cerca de 13 milhões de famílias, equivalentes a cerca de 50 milhões de pessoas, com orçamento anual previsto de R$ 15 bilhões neste ano. Enquanto isso, o EITC, nos Estados Unidos, em 2010, beneficiou 26,5 milhões de famílias, mais de 75 milhões de pessoas, com um total de aproximadamente US$ 59 bilhões. Isso significou um valor médio, para cada família, da ordem de US$ 2.226 por ano.

Deveríamos nós, do Brasil, protestar junto à Organização Mundial do Comércio pelo fato de os países envolvidos estarem subsidiando seus trabalhadores? Recomendo que não e que ajamos de forma semelhante ou ainda melhor. E quão melhor? É implantar a Renda Básica de Cidadania – RBC incondicional para toda a população. Como provar que é melhor? Nesse sentido, existe uma experiência bem-sucedida implantada no Alasca, onde há 28 anos paga-se, anualmente, um dividendo igual para toda a população.

Isso acontece desde 1976, quando, por proposta do governador Jay Hammond, resolveu-se separar 25% dos royalties provenientes da exploração de recursos naturais para se constituir um fundo que pertenceria a toda a população, então de 300 mil habitantes. E, assim, constituiu-se o Fundo Permanente do Alasca, cujo valor passou de US$ 1 bilhão, no início dos anos 80, para US$ 40 bilhões atualmente.

No Alasca, desde 1982, além do EITC, também se paga um dividendo, anual, a todos os ali residentes há um ano ou mais, que foi evoluindo de aproximadamente US$ 300 até o valor máximo de US$ 3.269 em 2008. Numa família de cinco pessoas, isso significou cerca de US$ 16.000 em 2008, pelo direito de todos os residentes do Alasca de participarem da riqueza daquele Estado.

O Brasil é a primeira nação do mundo cujo Congresso Nacional aprovou, por consenso de todos os partidos, a lei nº 10.835, de 2004, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que institui a Renda Básica de Cidadania, suficiente, na medida do possível, de acordo com o grau de desenvolvimento do país, para atender às necessidades vitais de cada pessoa. Será incondicional para todos. Será instituída por etapas, a critério do Poder Executivo. E deverá ser implementada ao lado de boas oportunidades de educação para todos, bem como da melhoria do sistema universal de saúde pública.

A Renda Básica de Cidadania, entretanto, ao ser implementada, terá significativas vantagens. Eliminará qualquer burocracia envolvida em se ter que saber quanto cada um ganha no mercado formal ou informal. Eliminará qualquer estigma ou sentimento de vergonha de a pessoa precisar dizer quanto ganha, para receber um complemento de renda.

Eliminará o fenômeno da dependência, que acontece quando se tem um sistema que diz que, se a pessoa não recebe até certo patamar de renda, passa a ter direito a um complemento de tal montante. Entretanto, se todas as pessoas tiverem a garantia da renda básica, qualquer esforço que realizarmos de trabalho sempre significará progresso.

Do ponto de vista da dignidade e da liberdade da pessoa humana é que teremos a maior vantagem. Pois, para aquelas pessoas que por vezes não encontram alternativa de sobrevivência, senão de se submeterem a atividades humilhantes ou de alto risco para sua saúde e vida, poderão passar a dizer “não” até que surjam oportunidades que estejam de acordo com sua vocação e vontade.

De qualquer fonte de riqueza gerada numa comunidade, num município, numa nação, sempre poderemos separar uma parte para constituir um fundo que a todos pertencerá para financiar a RBC.

Da mesma forma que as primeiras experiências de renda mínima associadas à educação se iniciaram localmente, para hoje terem se transformado nacionalmente no programa Bolsa Família, é possível se iniciar a RBC pioneiramente em municípios, a exemplo de Santo Antonio do Pinhal, no Estado de São Paulo, que aprovou lei nesse sentido, em 2009, e que deverá dar os passos proximamente para colocá-la em prática.

Um caminho promissor de desenvolvimento sustentável que passou a ser discutido intensamente em meios acadêmicos é o financiamento da Renda Básica de Cidadania, seja através de parcela da receita de rendimentos que advirá da exploração de recursos naturais, seja por meio da criação de taxas que seriam cobradas das fontes de poluição – os que emitem gás carbônico, e outros que fazem mal à saúde e ao clima, que precisa ser preservado para todos os seres vivos.

Eduardo Matarazzo Suplicy é senador da República (PT-SP)

Artigo publicado no jornal Valor Econômico

Fonte: Assessoria de Imprensa da Liderança do PT no Senado

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