Logo no início do governo Bolsonaro, escrevi um artigo intitulado “Bolsonaro não Descerá do Palanque”, no qual vaticinava que o ex-capitão não assumiria qualquer compromisso com a democracia e suas instituições e que governaria com o recurso fascista do ódio ao “inimigo interno”.
O artigo dizia o seguinte|:
É tocante ver a expectativa ansiosa com que a imprensa e certos setores políticos esperam algum gesto republicano, de conciliação, de comprometimento democrático, ou mesmo de mínima civilização por parte de Bolsonaro et caterva.
Mesmo após serem tratados como porcos em chiqueiro, há veículos e profissionais que dizem torcer pelo “êxito” do governo neofascista, que candidamente preveem que Bolsonaro deverá “governar para todos”, que ele fará concessões “em nome da governabilidade”, que ele terá de “conviver com as instituições democráticas”, que as “perspectivas para a economia são boas”, que isso tende a “distender o ambiente político”, que o “mercado está otimista” etc.
Vaticinam, enfim, que, ao ter de governar, Bolsonaro será um presidente “democrático” como outro qualquer e terá, eventualmente, de “descer do palanque” e abandonar a sua “retórica” belicosa e intolerante. Tal vaticínio panglossiano é compartilhado até mesmo por setores da oposição, que fizeram do PT seu inimigo principal e consideram que Bolsonaro não representa “um perigo para a democracia”.
Porém, isso jamais acontecerá. Bolsonaro não “descerá do palanque”. Fascistas nunca “descem do palanque”. Ao contrário, fascistas constroem imensos palanques e, de lá, mandam a democracia às favas.
Fascistas chegam ao poder e nele se mantêm pelo recurso ideológico à guerra contra o inimigo. Fascistas chegam ao poder e nele se mantêm pelo recurso político da destruição da democracia e de seus direitos e instituições.
Em condições de normalidade democrática, Hitler, um ex-cabo, não teria passado daquele indivíduo patético que fazia discursos de animada histeria em cervejarias de Munique. Em condições de normalidade democrática, Hitler não teria convencido a população alemã de que judeus e “bolcheviques” eram seus grandes inimigos e de que ele poderia livrá-los dessas “grandes ameaças” enviando “essa sujeira” para grandes fornos crematórios.
Em condições de normalidade democrática, Bolsonaro, um ex-capitão, não teria passado daquilo que sempre foi, um deputado do baixo clero cujos discursos eram incapazes de motivar até mesmo a plateia bêbada de uma cervejaria de Munique.
Não vivemos mais numa democracia e o bolsonarismo é uma forma de fascismo. Quem ainda não entendeu isso, não entendeu nada.
Não se espere racionalidade e pragmatismo político de um governo assentado no fundamentalismo cristão e no neofascismo. Não se espere governabilidade democrática e republicanismo de quem elogia ditadura e tortura e de quem prometeu o extermínio de opositores.
Bolsonaro não descerá do palanque. Erguerá um imenso palanque político e digital de ódio, propaganda e fake news, de onde governará perseguindo adversários. De onde governará perseguindo seu principal “inimigo”: o povo do Brasil.
Passados longos e tenebrosos sete meses, alguns setores que apostaram na fragilização da democracia brasileira, com o golpe de 2016 e a prisão ilegal de Lula, e apoiaram a ascensão do fascismo tupiniquim, acreditando na sua utilidade à causa da destruição do PT, começam a reconhecer publicamente que Bolsonaro não é lá muito democrático. Reconhecem mesmo que ele e sua turma de pitecantropos políticos não são lá muito civilizados.
Há alguns que até perderam a esperança de que Bolsonaro “governará para todos”. Ora, fascistas nunca governam para todos. Hitler nunca governou para todos os alemães. Certamente, não fez um bom governo para os judeus, os ciganos, os bolchevistas, os socialistas, os homossexuais e todos aqueles que não se deleitavam com a leitura da prodigiosa obra Mein Kampf.
Bolsonaro nunca teve a intenção de governar para todos e de se submeter aos limites das instituições democráticas. Sempre deixou isso bem claro em suas escandalosas declarações, que eram desconsideradas ou minimizadas por aqueles que achavam que ele poderia ser domesticado.
Possivelmente oligofrênico e certamente sociopata, o ex-capitão profere barbaridades ou comete desmandos com a naturalidade de um cavalão que defeca em público. Mas, ao contrário do que afirma, há uma estratégia implícita nessa contínua Kristallnacht contra a democracia e a civilização.
Ele está testando os limites do que restou da nossa democracia, insuflando as suas hordas contra os “inimigos” e disputando a hegemonia dentro das forças armadas. Quer medir a força que tem e até onde pode ir.
Se deixarem, irá até o final. Isto é, imporá um regime de exceção tout court, sem adjetivação, apoiado nos militares, nas hordas digitais, nas castas burocráticas partidarizadas pela direita, no grande capital satisfeito com as “reformas” antipopulares, em boa parte da mídia venal e nos EUA de Trump, seu grande amor. Como se sabe, ele admira ditaduras e torturadores e já declarou publicamente que o grande erro da ditadura militar foi não ter matado “umas 30 mil pessoas”. Falava sério. Assim como parece ter levado a sério a arte de desenhar croquis.
Entretanto, surgem, aqui e acolá, fissuras nas oligarquias que apoiam Bolsonaro e algumas reações das instituições democráticas contra a sociopatia política.
Certos setores consideram que Bolsonaro pode não ser muito bom para o “ambiente de negócios”. Com efeito, o caráter troglodita e atrasado do governo do capitão, especialmente no que toca à questão ambiental, pode comprometer muitas transações e investimentos. Até mesmo o Acordo Mercosul/UE, que só favorece alguns setores do agronegócio, pode ficar comprometido com os ataques do capitão ao ambientalismo, aos indígenas e ao INPE e com as declarações estapafúrdias do chanceler pré-iluminista, que atribui o aquecimento global aos gases ideológicos do “marxismo cultural”.
Da mesma forma, as nossas gloriosas instituições, que se omitiram ante os ataques à democracia, ao devido processo legal e à ordem constitucional, tanto do processo político que levou ao golpe quanto o da Lava Jato, agora reagem timidamente. Quem sabe não pelas razões corretas, mas por razões talvez meramente corporativas.
Assim, a OAB agora interpela Bolsonaro, após o Cérbero político ter agredido o pai do seu presidente, assassinado pela ditadura. Já o STF, acordando de longa hibernação, começa a tomar atitudes concretas contra os históricos desmandos da Lava Jato, após ficar constatado que os outrora heroicos procuradores, que prenderam Lula para pavimentar a eleição de Bolsonaro, se atreveram a investigar ilegalmente seus ministros.
Até onde irá essa reação institucional contra as hordas neofascistas não se sabe.
É pouco provável, contudo, que vá longe o suficiente para que se restabeleça a democracia plena e se coloque em xeque a agenda regressiva contra a soberania e os direitos dos trabalhadores e da população mais pobre.
Afinal, a nossas oligarquias historicamente conviveram bem com ditaduras e regimes de exceção. Seu liberalismo começa e termina com a liberdade para tocar seus negócios da maneira como desejam. Além disso, nessa quadra histórica, tais oligarquias consideram imprescindível contar com um regime forte, que assegure as taxas de lucro e as realizações de grandes negociatas, num ambiente de crise que acirra as contradições sociais.
Bolsonaro, desde que não atrapalhe o ambiente de negócios, mantenha algum verniz de normalidade e não agrida frontalmente as instituições, poderá ser tolerado, apesar de eventuais maus cheiros. Resta ver, porém, se ele aceitará limites ou continuará desafiando a ordem democrática já muito fragilizada.
Portanto, a defesa da democracia e a luta contra as hordas neofascistas caberá essencialmente à população, especialmente seus setores menos favorecidos, e a quem defende os direitos e os interesses do povo.
Afinal, no Brasil as ditaduras e os regimes de exceção, seletivos ou não, serviram sempre para assegurar que o látego da repressão e dos custos das crises caísse invariavelmente no lombo dos trabalhadores e de quem procurava defendê-los.
No Brasil, a luta pela democracia, sua ampliação e seu aprofundamento sempre foi liderada pelas esquerdas e pelas forças progressistas de um modo geral. A direita, quando veio, veio mais a reboque, sempre atrasada, para assegurar que o processo não saísse do controle.
Assim sendo, a grande tarefa emergencial e prioritária das forças progressistas é tentar deter a marcha do fascismo tupiniquim e defender o que restou da democracia brasileira e de suas instituições, seja através de impeachment ou anulação das eleições, se houver apoio popular para tanto, seja pressionando para que Bolsonaro respeite limites democráticos e civilizatórios.
De qualquer forma, Bolsonaro precisa ser detido, ou serão as forças progressistas e a população mais frágil que sofrerão as piores consequências. O dilema entre essa luta política-democrática e a o enfrentamento da agenda ultraneoliberal é falso, até mesmo porque se Bolsonaro conseguir êxito nas suas ações antidemocráticas, a luta contra tal agenda será totalmente prejudicada.
Conter Bolsonaro e seu fascismo e libertar Lula é a grande prioridade.