Contra a vontade dos povos indígenas, a posição de 309 organizações de todo o país e o voto do PT, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) aprovou nesta quarta-feira (23/8) um dos maiores retrocessos em termos de direitos indígenas da história do país, o projeto do Marco Temporal (PL 2.903/2023).
Líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES) foi direto ao ponto: “Esse projeto viola, além de princípios constitucionais, o princípio mais sagrado, que é o da dignidade da pessoa humana”.
O texto é defendido ferrenhamente pela bancada ruralista, que tem ampla maioria na comissão – o texto passou por 13 votos a 3. Antes da votação, a CRA promoveu uma audiência pública sobre o texto, por sugestão do senador Beto Faro (PT-PA), mas nem mesmo os fortes argumentos contrários expostos por representantes do Ministério da Justiça, da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) foram suficientes para sensibilizar os defensores do retrocesso. Agora, a proposta será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes de ir a plenário.
A iniciativa estabelece que só terão direito à demarcação de terras comunidades indígenas que comprovarem a ocupação do território até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Além disso, permite a exploração econômica de terras demarcadas por não indígenas, a contestação judicial de demarcações a qualquer tempo e em qualquer instância e autoriza o fim da política de não contato com povos isolados.
“É muito fácil para nós decidirmos, enquanto maioria de homens, brancos, ricos e engravatados, quando os povos indígenas é que deveriam estar aqui sentados”, afirmou Contarato, arrancando aplausos de apoiadores dos direitos indígenas que acompanhavam a votação.
Para ele, o texto comete o absurdo de expropriar terra indígena por perda de traços culturais. “É uma visão simplista de pessoas que sempre detiveram o poder, sempre massacraram indígenas”, apontou. “Vamos aqui contaminar povos isolados?”, questionou. “O projeto permite arrendamento de terra indígena com argumento de que já ocorre, mas ocorre de forma ilegal”, salientou.
Na mesma linha, o senador Humberto Costa (PT-PE) considerou “da maior gravidade” a decisão da CRA. “O projeto não é bom para os indígenas e é nefasto para o país”, reagiu.
Ele condenou um dos principais argumentos dos ruralistas, de que as terras demarcadas seriam muito extensas para abrigar pequeno número de indígenas. “Quando se trata de garantir direito histórico consagrado pela Constituição [aos povos indígenas], não vale, mas é legítimo que poucos produtores tenham a concentração de terras no país”, contestou.
“O projeto gera insegurança até para terras que já foram objeto de demarcação, pois permite que seja objeto de rediscussão”, destacou. Para Humberto, o texto também vai na contramão da comunidade estrangeira e prejudica a imagem do país no mundo.
O senador Beto Faro defendeu mais tempo para o diálogo, a fim de que o Senado encontre um meio termo. Segundo ele, a definição do marco temporal é, antes de mais nada, injusta por impor tratamento diferente apenas para indígenas. “Não é razoável que seja a data da Constituição para indígenas, mas, se um caboclo ocupa uma área, em um ano já pode ser feita a regularização, ou seja, para uma população tem um jeito, para outra população é considerado de outra forma. Eu quero debater isso!”, afirmou.
O líder do Governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), também defendeu mais tempo de debate para a busca de um consenso. “A insegurança jurídica não é boa nem para indígenas nem para não indígenas”, afirmou.
Para ele, o fato de as demarcações não terem acontecido no tempo certo e previsto pela Constituição decorre exatamente dos conflitos existentes. Jaques defendeu que seja então estabelecida uma mesma data para regularização de propriedade, seja para indígenas, seja para não indígenas.
Debate expõe retrocessos
A audiência pública que precedeu a votação na CRA serviu para que ficassem expostos todos os retrocessos impostos pelo projeto do Marco Temporal.
Para o secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça, Marivaldo Pereira, o texto vai aprofundar a insegurança jurídica em torno no assunto, ao contrário do que defendem os apoiadores. “É consenso de que precisamos buscar mecanismos para mitigar desses conflitos, mas o que está aqui vai ampliar muito mais o conflito já existente”, disse.
“Não me parece que autorizar o plantio de organismos geneticamente modificados em terras indígenas contribua para mitigar os conflitos. Não me parece que autorizar o contato direto com povos isolados contribua de alguma forma pra mitigar o conflito. Não me parece que estabelecer requisitos para a retomada de terras indígenas contribua de alguma forma pra mitigar os conflitos”, afirmou.
A presidenta da Funai, Joenia Wapichana, defendeu a participação dos povos indígenas na discussão de uma proposta que trata diretamente de seus direitos. Além disso, ela contesta o fato de o marco temporal ser tratado em projeto de lei, apesar de alterar o texto constitucional.
“São cláusulas pétreas, direitos fundamentais que possibilitam que aquele povo indígena esteja em segurança, o que harmoniza com o princípios da Constituição. É o que permite ao povo indígena exercer sua cidadania, com saúde, educação, desenvolvimento sustentável e proteção”, resumiu.