É razoavelmente comum alguma confusão, inclusive nas divulgações jornalísticas, sobre o enquadramento e o processamento de crimes cometidos pelo presidente da República. E pode-se afirmar, sem muitas delongas, que a redação do texto constitucional e da legislação infraconstitucional que sustenta o tema não é muito precisa, o que termina por contribuir com os equívocos interpretativos que têm se acentuado agora com a conjuntura.
O presidente da República pode cometer crimes comuns ou de responsabilidade. Não se inclui nas possibilidades do regime da ação de improbidade administrativa, de que trata a Lei nº 8.429/92, sendo as condutas ali descritas enquadradas nos crimes de responsabilidade, com foro estabelecido na Constituição Federal. Esse é o entendimento pacificado no Supremo Tribunal Federal.
Crimes comuns e crimes de responsabilidade facilmente se confundem nas análises, tendo em vista que a tipicidade das condutas descritas como crimes de responsabilidade conduzem a tipos abertos tanto no artigo 85 da Constituição Federal quanto na Lei 1.079/50. É necessário, em regra, que haja a correspondência na lei infraconstitucional própria ao se apontar um crime comum como crime de natureza político-administrativa, portanto de responsabilidade, em cumprimento a requisito básico.
O atual presidente Jair Bolsonaro possui 126 pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados até esta quarta-feira (7/7). Todos pendentes de recebimento pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.
Em paralelo, a ministra Rosa Weber acatou a notícia-crime apresentada pelo vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, para investigar Jair Bolsonaro pelo crime de prevaricação, definido no artigo 319 do Código Penal como o ato de “retardar ou deixar de praticar indevidamente ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, determinando um prazo de 90 dias para a investigação por parte da Polícia Federal. No caso, o presidente, segundo afirmado pelo deputado Luís Miranda (DEM-DF) e até hoje não negado, foi formalmente informado de um esquema de corrupção na compra da vacina Covaxin e deixou de comunicar à autoridade pública para que o investigasse.
Estabelece o artigo 86 da Constituição Federal de 1988 que cabe à Câmara dos Deputados autorizar o processamento da acusação contra o presidente da República, com o quórum de dois terços de seus membros, em votação aberta em Plenário, tanto ao Supremo Tribunal Federal nas infrações penais comuns quanto ao Senado nos crimes de responsabilidade.
Isso após o presidente da Câmara dos Deputados receber os pedidos. E aqui começa o gargalo jurídico que pretende este artigo abordar.
No sistema de freios e contrapesos é coerente que nas duas modalidades de responsabilização do chefe do Poder Executivo haja a participação dos poderes Legislativo e Judiciário nos ritos, lembrando que cabe ao presidente do STF conduzir o processo de impeachment no Senado.
Problema evidente é o vazio jurídico, tanto na Constituição Federal quanto na Lei 1.079, causado pela ausência de regramento na fase de recebimento de ambas as denúncias, deixando a cargo dos artigos 217 e 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados o procedimento.
“Artigo 217 — A solicitação do presidente do Supremo Tribunal Federal para instauração de processo, nas infrações penais comuns, contra o presidente e o Vice-presidente da República e os Ministro de Estado será recebida pelo presidente da Câmara dos Deputados, que notificará o acusado e despachará o expediente à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, observadas as seguintes normas:
Artigo 218 — É permitido a qualquer cidadão denunciar à Câmara dos Deputados o presidente da República, o Vice-presidente da República ou Ministro de Estado por crime de responsabilidade.
§2° Recebida a denúncia pelo presidente, verificada a existência dos requisitos de que trata o parágrafo anterior, será lida no expediente da sessão seguinte e despachada à Comissão Especial eleita, da qual participem, observada a respectiva proporção, representantes de todos os partidos” (grifos da autora).
Nos mais recentes exemplos de processamentos ocorridos, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, acatou o pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff em dezembro de 2015, que foi aprovado no plenário da casa legislativa. Já Rodrigo Maia encaminhou a análise do pedido do STF para investigar Michel Temer em agosto de 2017, que foi rejeitado pelos parlamentares. Nenhuma das decisões, contudo, tratou do aspecto da discricionariedade do ato.
O verbo utilizado nos dispositivos regimentais, tanto no pedido de qualquer cidadão por crime de responsabilidade, como de autorização do Supremo Tribunal Federal para instaurar ação por crime comum, é o mesmo: receber.
Importante consignar que na legislação civil pátria, como nos regimentos internos dos tribunais, todas as vezes que se usa o verbo “receber” não se está concedendo à autoridade a possibilidade de deixar de despachar os pedidos. As normas não conferem poder para se promover qualquer antecipação ao juízo de admissibilidade de mérito a priori, competindo exclusivamente a aferição dos requisitos formais. São exemplos:
“O juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias…”, “ao receber os autos, o presidente do Tribunal do Júri determinará a intimação do órgão do Ministério Público ou do querelante…” (artigos 406 e 422 do CPP). “Ao receber inquérito oriundo de instância inferior, o Relator verificará a competência do Supremo Tribunal Federal, recebendo-o no estado em que se encontrar” (artigo 230-a RISTF), “o presidente, ao receber o pedido: I – tomará as providências oficiais que lhe parecerem adequadas para remover, administrativamente, a causa do pedido; II – mandará arquivá-lo, se for manifestamente infundado, cabendo da sua decisão agravo regimental” (artigo 313, RISTJ).
Como se dessume, a aplicação dos artigos 217 e 218 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados não se coaduna com a melhor interpretação doutrinária. É facultado ao presidente da casa legislativa negar seguimento aos pedidos, por considerar inexistentes os pressupostos ou encaminhar por entendê-los presentes, mas nunca de deixar de examiná-los simplesmente.
É de se perguntar, ao final, se diante da negativa do presidente Arthur Lira em examinar os 126 pedidos de impeachment com inúmeras demonstrações do cometimento de crimes de responsabilidade pelo presidente Jair Bolsonaro, caso haja um pedido do STF para instaurar a ação penal, o que fará? Usará o mesmo verbo “receber” em sua acepção errônea e guardará em uma gaveta? A ver.
O que parece inexorável é a necessária e urgente mudança de procedimento nessa tomada de decisão, seja por nova interpretação dos dispositivos regimentais, seja por nova redação a eles conferida.
Artigo originalmente publicado no Conjur