comissão temporária

Crise Yanomami: “Se tivesse ido, levaria tiro”, diz presidenta da Funai

Joenia Wapichana denunciou ameaças recebidas durante crise humanitária no território
Crise Yanomami: “Se tivesse ido, levaria tiro”, diz presidenta da Funai

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A presidenta da Fundação Nacional do Índio (Funai), Joenia Wapichana, afirmou que levaria “um tiro na cabeça” se estivesse presente no ano passado durante a crise humanitária dos Yanomamis. A fala, feita em audiência pública no Senado, nesta quarta-feira (29), demonstra o quadro de total insegurança e abandono dos indígenas durante o governo Bolsonaro.

De acordo com Joenia, durante a campanha para deputada federal, em Roraima, sua equipe de trabalho foi ameaçada. “Eu dizia: se eu fosse [ao território Yanomami], se eu estivesse presente, ia levar um tiro na cabeça. Para ver ao que chegou a discussão do garimpo”, denunciou.

Wapichana afirma que os responsáveis pela situação são pessoas “muito acima” do que os garimpeiros que atuavam na região: aqueles que financiam a atividade ilegal.

“É como se os indígenas […] fossem responsáveis por ter ouro em suas terras. Ouro é cobiça. E quem tem cobiça são os que têm recursos para bancar um voo, um abastecimento de garimpo, aquele que vende o produto para fora e que se acha imune a qualquer aplicação da lei. As responsabilidades estão em pessoas muito ‘mais altas’ do que aqueles simples garimpeiros”, afirmou.

“Mas, com o encorajamento, a impunidade, parece que aumenta mais esse risco. Não somente de indígenas, mas aqueles que defendem, também. […] Por que a Funai está pedindo para reformar pistas de pouso [no território]? Para possibilitar a chegada de proteção territorial lá na base, a atuação dos serviços públicos de distribuição de cestas básicas”, acrescentou.

Secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Ricardo Weibe corroborou o ambiente absolutamente hostil. Segundo ele, a atuação garimpeira na região também está associada ao crime organizado – inclusive atrapalhando o atendimento médico local.

“Haviam grupos armados que estavam dificultando a atuação inclusive das nossas equipes de saúde no território. Tivemos uma unidade de saúde queimada, outras foram desativadas por ameaças e coação”, colocou.

“Estive no território Yanomami. Desci em duas comunidades que estavam tomadas pelo garimpo ilegal e pelo crime organizado. Eram pessoas armadas, não posso tratar simplesmente como trabalhador. Estavam coagindo, ameaçando. Só conseguimos descer porque estávamos em um helicóptero da Aeronáutica”, completou.

Em resposta à senadora Damares Alves (Republicanos-DF), durante a audiência, Joenia Wapichana fez questão de destacar a diferença de gestões: enquanto um governo deixava os indígenas expostos a riscos, o atual foca na proteção e apoio a esses povos.

“Estamos mudando a gestão. O que sempre alertamos é que temos uma legislação que já obriga o Estado brasileiro a fazer a proteção territorial. Temos uma vasta lista de decisões judiciais neste sentido. Estava faltando vontade política? Então estamos numa nova era, onde os gestores estão com toda a vontade política tanto de cumprir a legislação quanto as decisões judiciais”, esclareceu.

O evento foi promovido pela comissão temporária do Senado que acompanha a situação no território Yanomami de Roraima. Durante a reunião, foram ouvidas autoridades do governo federal, que trataram da situação dos indígenas e as ações do Estado para resolver a crise humanitária.

Integrante da comissão, o senador Humberto Costa (PT-PE) ressaltou que o colegiado irá até Roraima para acompanhar o caso de perto. “Temos confiança de que com a participação dos povos originários, teremos uma solução. Que não seja só para os povos Yanomamis, mas para todas as etnias Brasil afora”, disse.

Ações governamentais

As medidas do governo na área da saúde começaram ainda nos primeiros dias de gestão, a partir da investigação de indícios de óbitos de indígenas em Roraima. Após reuniões técnicas sobre o caso, foram enviadas missões exploratórias para identificar o que estava acontecendo por lá, onde foi confirmado um cenário de mortes, doenças e desnutrição. Por fim, o Ministério da Saúde declarou desassistência local e mobilizou equipes para atenderem as comunidades.

Os resultados já são sentidos: em duas semanas, mesmo com o caso de calamidade, a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) não registrou a morte de pacientes acolhidos. Além disso, os casos de crianças em estado crítico também reduziu consideravelmente, não sendo necessário no período a remoção de nenhuma criança para os hospitais de Boa Vista devido ao quadro de saúde.

Apesar das providências terem sido imediatas, as medidas ainda são emergenciais, dada a gravidade do tema. O diretor do departamento de conciliação de conflitos do Ministério dos Povos Indígenas, Marcos Kaingang, afirma que o governo analisa ações de longo prazo para garantir a saúde dos Yanomamis.

“As ações promovidas atualmente são todas emergenciais. Esse é um objetivo nosso: promover políticas públicas de longo prazo, também. Este é um compromisso do Ministério dos Povos Indígenas. Tivemos óbitos devido a uma negligência do serviço público, que não chegou ao território. Agora, vemos uma redução de mortes bem nítida nos últimos três meses devido às operações do governo federal na região”, apontou.

Na mesma linha, Humberto Costa destacou que o problema terá soluções definitivas apenas em médio e longo prazo, mas ressaltou o compromisso do atual governo não apenas com palavras, mas com ações.

“O que já foi feito até agora, começando com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, representa um avanço importante. E ainda temos as ações realizadas ligadas à tragédia Yanomami, que tem tido uma continuidade, apesar de ser um problema para uma solução definitiva de médio e longo prazo. Não se pega uma população que passou por aquele processo todo e se consegue um imediato restabelecimento das suas condições de saúde”, explicou.

No médio prazo, o governo planeja adotar soluções mais estruturantes para aumentar o quadro de pessoal para prestação de serviços de saúde, de acordo com o diretor de Programa da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, Jorge Luiz Reghini. Ainda de acordo com ele, também haverá atenção para estruturas (unidades hospitalares e equipamentos) que serão adaptadas à realidade local, além de apoio na área de saneamento básico.

Desvio de verbas

A senadora Eliziane Gama (PSD-MA) questionou sobre as investigações a respeito do desvio de recursos públicos destinados aos povos Yanomami na gestão anterior. Sobre o tema, Marcos Kaingang afirmou que o julgamento sobre o tema caberá aos órgãos competentes, mas lembrou os recursos bilionários destinados a organizações na gestão anterior.

“Temos, de fato, valores bilionários repassados a organizações para executar políticas públicas de assistência de saúde nesses territórios. E vemos que esses recursos não foram executados de forma qualificada”, concluiu.

Joenia Wapichana acrescentou que o resultado das investigações logo “virá à tona”. De acordo com ela, as suspeitas não são apenas de desvio de recursos do Executivo, mas até de emendas parlamentares.

“O Tribunal de Contas da União está investigando denúncia de desvio de recursos. Não só do que veio do próprio Executivo, mas também de emendas parlamentares – há uma suspeita de desvio de aplicação. Logo virá à tona o resultado dessa investigação. É preciso saber onde foi aplicado esse dinheiro que não prestou o seu devido cumprimento de atender à população Yanomami. Precisa ver a responsabilidade do gestor, mas também das empresas que estavam envolvidas”, colocou.

Exploração de crianças

Joenia Wapichana destacou que o garimpo ilegal nas terras Yanomami aumentou a circulação de armas de fogo na região. Para ela, será desafio do Congresso Nacional será responder à crise local, que aumentou a violência local e exploração de indígenas.

“Inclusive a distribuição de arma de fogo, o garimpo fez isso aumentar. E, principalmente, o aliciamento dos jovens, a exploração ilegal do trabalho indígena, abuso e exploração sexual de mulheres e crianças indígenas”, apontou Wapichana.

Ela destacou projetos em andamento para combater, por exemplo, o uso do mercúrio em terras públicas e da rastreabilidade do ouro. Para ela, é preciso saber quem está lucrando com as atividades ilegais e a morte de crianças.

“É necessário que haja eficiência tanto na fiscalização do comércio de ouro, mas também na compra, na venda e no transporte. Quem está lucrando com o garimpo? Quem tá lucrando com as vidas de crianças que estamos perdendo? Quem realmente está por trás de toda essa crise humanitária que os Yanomamis e outros povos estão passando?”, questionou.

Wapichana reforça que o governo federal tem atuado no tema, mas que é preciso manter o Estado Democrático de Direito para garantir os direitos dos povos indígenas.

“Estamos correndo para salvar mais vidas, mas é também necessário estabelecer um Estado Democrático de Direito para que a gente também recupere a imagem do nosso Brasil. Não é um Estado como aquele que violava direitos, mas o que dá resposta e que sabe solucionar os seus problemas”, disse.

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