A recente visita da presidenta Dilma a Cuba revelou o alto grau de hipocrisia que cerca o tema da democracia e dos direitos humanos no plano internacional e na nossa mídia conservadora, particularmente no que se refere à política norte-americana e, em parte, europeia, de indignação seletiva frente a essa questão.
Na realidade, os países costumam conduzir as suas políticas externas com base nos seus interesses estratégicos, diplomáticos e econômicos concretos. Nesse quadro estrito de realpolitik, considerações sobre regimes internos não possuem grande relevância. Isso vale mesmo para as nações que têm os sistemas democráticos considerados mais “avançados”, como os EUA, por exemplo. Com efeito, o Departamento de Estado norte-americano critica e persegue países com regimes autoritários que lhe são hostis (Cuba, Irã, Coreia do Norte, etc.), mas, ao mesmo tempo, protege e incentiva regimes ditatoriais considerados “amigáveis”, como o da Arábia Saudita, Kuwait, Bahrein e Jordânia, por exemplo. Lembre-se que, em outras épocas, os EUA perseguiram também regimes democráticos considerados perigosos aos seus interesses e os substituíram por dóceis ditaduras. Os latino-americanos que o digam.
Entretanto, sempre que o Brasil, agora na inequívoca posição de potência emergente, procura estreitar suas relações com países que têm problemas em seus regimes políticos, ou que são classificados, por alguns, como “não-democráticos”, surgem imediatamente as críticas toscas e desinformadas sobre as visitas a “ditadores”, o perigo das “más companhias” e o abandono dos “históricos valores” da nossa diplomacia. Com efeito, a recente reaproximação do Brasil à África e ao Oriente Médio, inclusive a países como o Irã, provocou um festival de críticas parvas em nossa imprensa conservadora, as quais apenas reproduzem, em geral, os “argumentos” simplórios do Departamento de Estado norte-americano. A recente visita da nossa presidente a Cuba, país com o qual mantemos boas relações desde o fim da ditadura, também mereceu amplo destaque negativo na mídia, que, num claro sinal de delírio ideológico extremo, classificou a sociedade daquele país como um “apartheid social” (sic).
A bem da verdade, a posição histórica da diplomacia brasileira tem sido a de evitar as condenações oportunistas, hipócritas e inúteis a certos países que não são do agrado dos EUA e aliados. Assim, o Brasil normalmente se abstém nas votações que visam condenar e isolar nações como Cuba, por exemplo. Tal posição não foi inventada ou introduzida pelos governos Lula e Dilma, como parecem acreditar alguns. É uma posição já tradicional do Estado brasileiro. Para o nosso país, o tema dos direitos humanos é demasiadamente importante para ser usado oportunisticamente por interesses políticos específicos.
Mas, independentemente da caracterização dos regimes políticos das nações, a pergunta que se coloca nesse debate é: se o currículo democrático e de direitos humanos é fator determinante para conduzir a política externa, com quais países o Brasil poderia manter e estreitar relações?
Faço essa pergunta aparentemente banal porque há, de fato, poucos países no mundo que têm regimes plenamente democráticos e adequada promoção e proteção aos direitos humanos. De acordo com a World Audit, organização que faz avaliações periódicas sobre a democracia e os direitos humanos no mundo, apenas 36 nações, entre os 150 países do mundo que têm populações que excedem 1 milhão de habitantes, podem ser consideradas “plenamente democráticas”. Outras 34 podem ser consideradas como em “transição para a democracia”, e vêm fazendo progressos. A maioria (80) é composta por países que simplesmente não são democráticos.
Assim sendo, se levarmos a sério a exigência ideológica e oportunista da dos EUA e da nossa oposição conservadora, o Brasil não poderia estreitar relações com a maior parte dos países do mundo.
Considere-se, adicionalmente, que isso implicaria praticamente o abandono de vastos setores do planeta, como a África, o Oriente Médio e a Ásia Central. A situação é particularmente grave no continente africano, onde a grande maioria dos países, saída em período relativamente recente do domínio colonial, ainda não conseguiu construir instituições políticas estáveis e um verdadeiro Estado-Nação. São países dominados por interesses tribais e paroquiais. Conforme avaliação da World Audit, dos 45 países africanos com mais de 1 milhão de habitantes, nenhum é verdadeiramente democrático e apenas 10 vêm fazendo progressos para atingir a plenitude democrática. O resto é não-democrático. Portanto, quase 80% dos países africanos podem ser considerados ditaduras. Dessa forma, se déssemos ouvidos à oposição, a exitosa diretriz da nossa política externa de reaproximação à África teria de ser abandonada. O mesmo aconteceria com o Oriente Médio.
Outra pergunta banal que teria de respondida é a seguinte: os países plenamente democráticos poderiam manter relações com o Brasil? De fato, o Brasil, embora seja indubitavelmente uma nova e dinâmica democracia, infelizmente ainda possui problemas sérios de direitos humanos. A tortura, conforme a Anistia Internacional, é largamente praticada em nossas delegacias e prisões, há muitas execuções extrajudiciais, apesar dos avanços recentes, e, em algumas regiões remotas, conforme a OIT, ainda há trabalho em condição “semelhante à escravidão”. Em sua feroz campanha para isolar os países com problemas democráticos e de direitos humanos, será que a nossa oposição conservadora recomendaria aos demais países que não estreitassem as suas relações com o Brasil?
Porém, a terceira, e mais importante pergunta, que têm de ser posta no debate é: a estratégia do isolamento político-diplomático, como parecem querer a nossa oposição e os EUA, pode fomentar a democracia no mundo?
Ora, a história nos mostra que não. O isolamento econômico e político produz, de modo geral, efeito inverso: amealha apoio interno aos ditadores e exacerba a violência política, além de prejudicar essencialmente a população inocente. A democracia, por óbvio, não pode ser imposta exogenamente, embora alguns pareçam acreditar que a liberdade deva ser imposta pela violência. Somente quando há forças dinâmicas internas capazes de expressar projetos políticos alternativos a democracia pode florescer. E o surgimento dessas forças tem muita relação com a prosperidade econômica e o intercâmbio de informações e experiências que somente à integração à comunidade internacional pode acarretar. Definitivamente, a democracia e os direitos humanos têm imensas dificuldades de prosperar em meio à miséria, à desigualdade e ao isolamento.
Por conseguinte, investir na integração e na cooperação, como faz hoje o Brasil, pode ser a melhor forma de incentivar, ainda que indiretamente, a progressiva implementação de regimes realmente democráticos no mundo. Temos muito mais poder para influenciar positivamente quando estreitamos nossas relações, e não quando investimos no confronto e no isolamento.
Isso não significa, no entanto, que o Brasil não possa e não deva, desde a influente posição de país disposto à cooperação, pressionar por aquilo que considera correto, como bem fez, por exemplo, durante visita de Ahmadinejad, em 2009. Entretanto, o Brasil não pode contribuir para a atual política norte-americana de indignação seletiva, em relação aos direitos humanos, a qual, além de consagrar a hipocrisia no plano internacional, vem se revelando um verdadeiro desastre. Afeganistão e Iraque que o digam. Cuba vem sendo submetida a um vergonhoso bloqueio econômico há mais de 5 décadas sem nenhum resultado, do ponto de vista dos interesses dos EUA. Na realidade, o isolamento acaba conduzindo ao enrijecimento político e aos conflitos armados, e, como todos sabem, a guerra implica supressão absoluta da democracia e dos direitos humanos.
A forma mais correta de propugnar pelos direitos humanos é continuar a investir, como o Brasil vem fazendo, no diálogo, na cooperação e no respeito ao princípio do multilateralismo. Sem indignação seletiva. Sem usar politicamente o tema sensível e complicado dos direitos humanos.
Agora, investir no isolamento e na confrontação seletiva e hipócrita não contribui para a democracia no mundo. Não ajuda Cuba e não ajuda o Brasil. Talvez sequer ajude a vender jornais rançosos.
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado