ARTIGO

Desafios da alta política em tempos de coronavírus

Somos iguais perante a lei, mesmo que uma parte do país não veja isso com a clareza necessária
Desafios da alta política em tempos de coronavírus

Foto: Alessandro Dantas

Pertenço a uma geração que acredita no diálogo, no entendimento, no respeito às opiniões e ao pensamento, às diversidades e aos direitos humanos, num futuro de felicidade individual e coletiva. Sou otimista. O pessimista é um derrotado por antecedência. Tive vitórias e derrotas. Tudo é aprendizado. E quando se aprende, com verdade, resiliência e empatia, deixando de lado as angústias, os medos e as disputas mesquinhas, o coração se torna muito mais do que um órgão que bate para levar sangue ao corpo inteiro, oxigenando a existência. Ele se torna razão e emoção, lados iguais de ângulos diferentes.

Os problemas do nosso país serão resolvidos a partir da alta política e do sentimento de coletividade e brasilidade. Ela não é uma ação de cima para baixo, formada de mentiras, de negligências e de fake news, provida de homens e suas naus salvadoras, muito menos de grupos que só pregam o ódio e a violência. É preciso ir além do horizonte e nos despirmos das máscaras que nos envolvem, tão somente por disputas pelo poder. Observem que isso é a antítese da alta política, é o fracasso da própria classe política, dos seus atores e personagens, dos governos e suas políticas públicas que só beneficiam parte da população.

O Brasil é um imenso caudal de cores e verbos, de luzes e sonoridades das florestas e das cidades. Há homens e mulheres que caminham pelas terras secas do Nordeste; há homens e mulheres que cantam as curvas do Pantanal; há homens e mulheres que pescam a seiva das madrugadas para acordar um novo dia. O povo do litoral abre os braços e joga flores ao mar. Há homens e mulheres que escrevem em suas mãos a geografia laboral; e há homens e mulheres que apostam tudo no abrir caminhos de amor e esperança. É claro que as coisas não são simples e poéticas como essas palavras. A questão é: por que o nosso país não cresce e se desenvolve com dignidade e decência? Por que o nosso país não age com olhos humanos?

Como pode um recém-nascido ou uma criança de poucos anos passar fome? Imagine o desespero de uma mãe e de um pai? Como pode um idoso morrer por falta de atendimento médico? Como é possível existir milhares de pessoas morando nas ruas? Como pode um país não estender a dignidade do trabalho ao seu povo? Presenciamos isso, todos os dias, nas ruas e praças do nosso país, nas favelas e vilas, nos campos desérticos. Pesquisa do IBGE diz que o país possui 13,5 milhões de miseráveis, vivendo com renda mensal inferior a R$ 145,00, segundo critério do Banco Mundial. Temos mais miseráveis do que a soma de todos os habitantes de países como Bolívia, Portugal, Bélgica, Cuba ou Grécia.

Não é a ideologia partidária que vai nos tirar dessa crise, nos abrir ao mundo e destravar o tão sonhado crescimento e desenvolvimento com sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e ao ser humano

Renato Russo chamava a atenção em suas poesias e canções para situações insuportáveis de humilhação a qual o ser humano é levado: “sem trabalho não sou nada, não tenho dignidade, não sinto o meu valor”. Temos hoje 12 milhões de desempregados; 40 milhões na informalidade, sem direitos sociais, previdenciários e trabalhistas. Um a cada quatro brasileiros é pobre: 25% da população ou 52,5 milhões. Em quatro anos, a renda dos 5% mais pobres caiu 39%. Somos um país onde, cada vez mais, poucos têm muito e uma enormidade de gente não tem nada. O Banco Mundial aponta que os 10% mais ricos do Brasil têm quase a metade da renda de todo o país.

Como fica toda essa nossa gente em meio à crise da pandemia do coronavírus? Precisamos olhar para elas, garantir saúde, empregos e renda. Não é injetando 1,2 trilhões de reais nos bancos e 10 bilhões na saúde que vamos resolver o problema. A saúde do nosso povo é prioridade. Faça-se o que tiver de ser feito. E tudo o que for feito ainda será pouco: fechamento das fronteiras, restrição de voos internacionais, triagem em aeroportos, portos e rodoviárias, isolamento social (físico). Temos que redirecionar o Orçamento da União. Não podemos pecar pela negligência e pela rigidez fiscal. É preciso salvar vidas. É urgente o investimento em respiradores artificiais. Temos que pôr fim ao teto dos gastos, fortalecer o SUS, criar mais leitos de UTIs, expandir o Bolsa Família, os benefícios da Previdência, fazer cumprir a lei que criou a renda básica de cidadania, baixar as taxas de juros, não permitir cortes de água e luz por quatro meses e congelar o pagamento de empréstimos consignados dos aposentados pelo mesmo período.

Enquanto vários países caminham na direção do bem-estar e da felicidade do seu povo, criando resguardo e agindo pela manutenção dos direitos sociais – cito aqui o Reino Unido que vai pagar os salários de trabalhadores para evitar demissões – o governo brasileiro, em tempos de coronavírus, edita uma medida provisória (MP 927/2020) que penaliza os trabalhadores. Repito aqui: é preciso garantir empregos e renda. Felizmente o governo caiu na real e revogou o artigo 18, que permite a suspensão do contrato de trabalho por quatro meses sem salário. Mas há mais crueldades nessa MP que precisam ser barradas: celebração de acordos individuais entre empregado e empregador, passando por cima da CLT e acordos coletivos, e a fragilização da fiscalização, o que atingiria, em cheio, a segurança e a saúde do trabalhador.

Não é a ideologia partidária que vai nos tirar dessa crise, nos abrir ao mundo e destravar o tão sonhado crescimento e desenvolvimento com sustentabilidade e respeito ao meio ambiente e ao ser humano. Não é fazendo o debate agressivo, maniqueísta e egocêntrico que vamos nos elevar a um patamar superior de consciência. Definitivamente, não! A consciência está em cada um de nós, basta despertá-la. Um soldado, na Segunda Guerra Mundial, assim escreveu: “Queridos pais, fui condenado à morte porque me neguei a fuzilar prisioneiros indefesos. Prefiro morrer a levar pela vida afora a consciência carregada com o sangue dos inocentes. Foi a senhora, querida mãe, que me ensinou sempre a seguir a consciência e só depois as ordens dos homens”.

Somos iguais perante a lei. Porém, um país inteiro pode não ver isso com a necessária clareza. Por isso, é preciso perseverar e trabalhar, cada vez mais, para melhorar a vida das pessoas. É necessário fazer a alta política. É preciso que o governo chame para dialogar os empresários, os trabalhadores e os aposentados. Eu tenho esperança de que as incertezas que nos atingem, em um breve espaço de tempo, serão apenas dores de um distante passado. No dizer de Fernando Pessoa: “Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro”.

Paulo Paim está no terceiro mandato como senador, eleito pelo PT do Rio Grande do Sul. Atua na defesa dos direitos sociais e trabalhistas e é presidente da Comissão de Direitos Humanos. Autor das leis dos Estatutos do Idoso, da Pessoa com Deficiência e da Igualdade Racial, e relator do Estatuto da Juventude. Foi deputado federal constituinte em 1988.

Artigo originalmente publicado no Nexo Jornal

To top