Recentemente, o apresentador Luciano Huck alertou uma plateia de empresários para os perigos da nossa desigualdade social. “Se não fizermos nada, o país vai implodir”, previu. Há quem ache que se trata de um falso alarme. Afinal, países dificilmente implodem, salvo em casos de invasão ou revoluções.
Outros argumentam que a própria meta de redução das diferenças carece de sentido. No entender destes, o que realmente conta é a diminuição da pobreza na qual estão imersos milhões de patrícios. Afinal, se eles conseguissem alcançar um nível de vida decente, as fruições da parcela dos muito ricos seriam irrelevantes.
O raciocínio parece sensato. Talvez não seja.
No Brasil, as desigualdades de renda e patrimônio são imensas e duradouras. Sua trajetória e os dados que a comprovam estão no excelente livro “Uma história de desigualdade – a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013”, de Pedro H.G. Ferreira de Souza, pesquisador do Ipea.
O trabalho deixa claro que o Brasil não é só uma nação desigual entre tantas outras, mas ocupa lugar especial entre aquelas para as quais há dados confiáveis. Só aqui e no Qatar, o país mais rico do mundo por habitante, graças a suas reservas de gás, 1% do topo da população se apropria de mais de 1/4 da renda total. Cerca de 1,4 milhão de brasileiros abocanha aproximadamente o mesmo naco da riqueza nacional que os 102 milhões do contingente dos 50% mais pobres.
Dito de outro modo, o grupo dos 10% mais ricos detém pelo menos 35% da renda nacional. Seria preciso crescer a taxas muito elevadas durante muito tempo para que a pobreza fosse vencida sem alguma redistribuição dos mais para os menos afortunados.
A concentração de renda cria seus próprios mecanismos de perpetuação. Ela também associa-se e com frequência reforça outras expressões de desigualdade: no padrão dos serviços sociais recebidos por uns e outros, nos equipamentos urbanos disponíveis, no acesso à Justiça, no tratamento que merecem dos agentes públicos, no respeito aos direitos individuais —tudo confluindo para uma convivência social embrutecida e violenta.
É possível que o Brasil tenha perdido a oportunidade de se tornar um país socialmente menos iníquo e um tanto mais decente. Mas, como não podemos saber ao certo, é importante que os vexames da desigualdade e da pobreza —banidos do horizonte da profana aliança dirigente entre economistas ultraliberais, os porta-estandartes do atraso cultural e o populismo de extrema direita— voltem a ocupar espaço no discurso do centro político.
Maria Hermínia Tavares de Almeida
Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.
* Artigo originalmente publicado na Folha de S. Paulo, em 19 de setembro de 2019.