Pesquisa divulgada na Folha de São Paulo na semana passada estampou três resultados acachapantes: a greve dos caminhoneiros tinha o apoio de 87% da população; e 92% consideravam justas as reivindicações. Mais relevante, ainda, foi que também 87% consideravam que as propostas de Temer para solucionar a crise não eram satisfatórias.
De onde veio tanto apoio aos caminhoneiros? Não é preciso consultar as análises de conjuntura feitas pela esquerda. Os analistas mais antenados do mercado financeiro reconhecem as razões profundas de tanto apoio social: a agenda neoliberal tornou-se irremediavelmente impopular no Brasil. E perceberam o impasse. Ítalo Lombardi, estrategista sênior para mercados emergentes do Crédit Agricole em Nova York, na edição do Valor Econômico de 28/05/2018, declara: “É uma agenda econômica que claramente a população está rechaçando. […] Consigo ver perdedores claros: o governo e sua agenda econômica”.
A greve dos caminhoneiros foi a fagulha que armou a tempestade perfeita. Parafraseando o refrão das mobilizações de Junho de 2013, “não são apenas 20 centavos”. Poder-se-ia hoje também dizer: não são apenas os 46 centavos por litro, são os caminhoneiros e muito mais. O mal-estar é amplo. Há uma percepção generalizada de que o país escalou um novo patamar de uma crise econômica cíclica: a devastação social. Temer foi a nocaute e, junto com ele, a agenda neoliberal foi parar no brejo.
Aliás, a crise do neoliberalismo é mundial. A brutal hegemonia do capital financeiro acaba com qualquer espaço possível de mediação entre o capital e o trabalho. Vão longe os tempos dos “30 anos gloriosos” de construção do Estado de Bem-Estar Social na Europa, bem como do projeto desenvolvimentista na periferia e semiperiferia do capitalismo (Brasil e outros grandes países da América Latina). O resultado de tudo isso é um cenário de terra arrasada, de perda de direitos, redução da renda do trabalho e precarização. A afluência transformou-se em incerteza. No rastro da insatisfação, a direita fascista, com um discurso raivoso de nacionalismo chauvinista, aproveita-se da fragilidade de uma esquerda acomodada, habituada à gestão de migalhas no âmbito da hegemonia neoliberal – a exemplo da “terceira via” de Tony Blair e da capitulação de François Hollande. Uma esquerda desfigurada tem sido presa fácil para a vitória dos neofascistas. Foi no combate ao “neoliberalismo cosmopolita” de Hollande que Marine Le Pen ganhou pontos, por exemplo.
Somente uma esquerda de verdade conseguirá derrotar a ascensão da direita no mundo. Por exemplo, processos políticos recentes, como a reaproximação do Partido Trabalhista inglês com sua base social, com o discurso contundente de Jeremy Corbyn, e o radicalismo patriótico francês de Jean-Luc Mélenchon, demonstram que é possível disputar as massas em pé de igualdade. Trata-se de disputar e conquistar hegemonia social a partir de um projeto claro de demarcação contra o capitalismo financeiro e suas mazelas. Ganhar eleição vem por consequência.
É chegada a hora de abrir um novo ciclo. De surgir uma esquerda com mais nitidez programática, que fale mais de socialismo. Que seja social e de massas e pense mais em termos de economia política, de Estado e de estratégia. Nesse sentido, há de se ter discurso e soluções para a distribuição de renda, o emprego, a ascensão social dos trabalhadores, dos direitos dos negros, das mulheres e da comunidade LGBT.
A notícia de que o precariado está se movendo no Brasil – mesmo que pelas franjas mais conservadoras – como assistimos na greve dos caminhoneiros, é auspiciosa. Entretanto, pode vir a ser tenebrosa, caso o sujeito histórico da derrota dos neoliberais não seja à esquerda, mas as variadas expressões contemporâneas do fascismo. A história é sempre é um processo aberto. Sobrevirá a tragédia se, caso o centro-direita neoliberal realmente sucumba, paralelamente a esquerda não lograr polarizar à altura com a “nova direita” fascista.
Projeto e métodos de trabalho são umbilicalmente ligados em política. Falando claramente, também fomos pegos de surpresa pelo alcance, não simplesmente da greve dos caminhoneiros, mas também pelo apoio popular. Falhamos em apontar com a rapidez necessária as diretrizes de ação. Deveríamos ter seguido, por exemplo, a rapidez de encaminhamento do MST. Os sem-terra declararam imediatamente o apoio à greve e se dirigiram às estradas, distribuindo gêneros, buscando estabelecer alianças pela base com a greve.
Desde o primeiro momento, deveríamos ter lançado “todo apoio aos caminhoneiros”. No entanto, a primeira reação foi de relativo imobilismo. É incrível que essa defensiva, visível no começo da greve, e superada parcialmente numa segunda etapa, tenha acontecido quando tínhamos uma narrativa para falar aos caminheiros e todo o país. Afinal, nos nossos governos, nada disso aconteceu. Havia preocupação com o impacto social e econômico dos reajustes. Foram apenas oito reajustes em oito anos de Lula versus 230 de Temer/Parente.
Alguns de nós enredamo-nos em discussões intermináveis, tipo: a) Greve ou locaute?; b) A categoria é conservadora e reacionária; c) Cuidado para tudo isso não resultar numa “intervenção militar”; d) O “fora Temer” é uma bandeira que já se generalizou, até mesmo na direita. Tenhamos mais parcimônia no seu uso.
Sobre a polêmica “greve ou locaute”, citamos o lúcido artigo do juiz do trabalho Jorge Souto Maior: “ainda que se tenham elementos para afirmar que muitas empresas de transporte apoiaram e até impulsionaram a paralisação dos caminhoneiros, não se pode dizer que o fizeram para frustrar uma negociação com os respectivos empregados ou dificultar-lhes o atendimento de suas reivindicações (…) embora rara, haveria uma comunhão de interesses com relação ao objeto da paralisação, a redução dos custos de produção, razão pela qual, [pode ser] visto como ação de natureza política.” É fato, não foi locaute, não estamos nos estertores do governo da Unidade Popular no Chile (1973) e muito menos Temer é Allende.
Quanto ao caráter conservador da categoria dos caminhoneiros, a maioria pode até ser conservadora/reacionária no aspecto moral e ideológico. No entanto, essa visão de senso comum é insuficiente como caracterização de classe, que deve ser definida, antes de tudo, pelo lugar que ocupa na produção. Definir classe primeiramente pela ideologia ou a renda (lembram-se da “Classe C”?), definitivamente não é concepção marxista. De fato, uma interessante contradição em processo, mesmo ideologicamente de maioria conservadora/reacionária, os caminhoneiros são uma das pontas mais superexploradas do precariado brasileiro. Devemos ou não disputar política e ideologicamente o precariado? Faz sentido disputar o precariado e deixar os caminhoneiros de fora?
A bandeira do “Fora Temer” se ergueu como uma onda a partir de nosso ativismo, no tempo que a direita gritava “Fica Temer”. A direita ajudou Temer a chegar ao governo participando da frente golpista. Agora, passou óleo de peroba no corpo e grita o “Fora Temer” nas rodovias, associando-o à diretiva de “intervenção militar”. Passamos dois anos na resistência, trabalhando a bandeira e não é agora, que o “Fora Temer” se tornou amplamente majoritário, virou agitação e síntese contra todos os desmandos, que vamos enfiar a viola no saco e dele abrir mão.
O crescimento da palavra de ordem da “intervenção militar”, especialmente em setores dos trabalhadores, é, sem dúvida, preocupante. Mas, a pior maneira de combatê-la é o imobilismo paranóico. Temos que disputar a consciência das massas nos esforçando para colocar as bandeiras vermelhas nas ruas. Não se enfrenta o fascismo se retraindo, na defensiva. Outra questão é que há um segredo de polichinelo nessa palavra de ordem. A direita, especialmente o grupo bolsonarista, agita a “intervenção militar”, mas, no curto prazo, o “Plano A” é Bolsonaro 2018.
Apesar de toda a complexidade dessa conjuntura, os acontecimentos brasileiros não são fatos isolados. Antes da greve dos caminhoneiros, assistimos na Argentina o fracasso do governo de Mauricio Macri. A conclusão é que o neoliberalismo começou a criar as premissas de sua derrota na América Latina. Aliás, de maneira surpreendentemente rápida.
Pela dimensão da derrota que nos armaram, seria perfeitamente realista um pensamento de tipo defensivo de prolongada resistência, supondo que a perspectiva de poder no subcontinente, e no Brasil, passaria longo tempo distante da esquerda. A ofensiva internacional recente de guerra híbrida não convencional (ou “ofensiva de choque”, nos termos de Naomi Klein) de derrubada do ciclo de governos populares (golpes de impeachment, criminalização da política etc.), foi fulminante. Alguns até chegaram a formular ter havido uma derrota estratégica.
Contudo, mais do que sobrevivendo e resistindo, as condições objetivas de uma ofensiva popular estão se criando pela rápida falência, não simplesmente de Temer ou Macri, mas do modelo neoliberal. Aqui no Brasil, em dois anos de golpe, houve tamanha devastação social que começa a provocar um mau humor e descontentamento de parcelas cada vez maiores da população. Nesse contexto, pode-se afirmar que é plenamente possível vencer as eleições com um programa e um discurso sem conciliação, que falem ao coração dos trabalhadores.
Existe hoje no Brasil uma corrente fascista de massas. Enfrentamentos de disputa esquerda-direita pela influência das massas tendem a se tornar corriqueiros. Ou seja, a disputa ocorrida na greve dos caminhoneiros tende a se tornar regra em vez de exceção. Historicamente, a direita fascista sempre pretendeu criar laços com os trabalhadores com falsas soluções para a realidade do desemprego e da desesperança na crise. Não há novidade nisso. Precisamos sair da zona de conforto e disputar espaços com os fascismos, onde quer que eles despontem. Temos os ativos da melhor narrativa, experiência histórica, partidos de massas e a liderança de Lula.
Nos dias de fúria é que surge a esperança.