Difícil reconciliação, tarde demais, inútil se as culpas não forem admitidas

Como a revista TheEconomist registrou o relatório da Comissão Nacional da Verdade

Você poderá se perguntar: afinal, porque um site ligado ao PT dá atenção ao que diz a neoliberal The Economist?

A resposta é simples. Primeiro, o rótulo “neoliberal” não cabe no caso – e por uma razão muito simples: a revista existe desde 1843, quando o liberalismo começava a ser inventado como filosofia política. Quer dizer, é muito mais antiga do que o que nos habituamos a chamar de neoliberal.

Em resumo, para a Economist o liberalismo se estende desde a liberdade total para a livre iniciativa empresarial, fundamentalmente capitalista, até a liberdade para o cidadão consumir qualquer tipo de droga que ele pretender.

Por causa dessa opção radical pelo liberalismo em todas as suas formas, a Economist é a mais respeitada, mais temida e também a mais lida por governantes de todas as partes do mundo.

Segundo, porque o padrão ético dos editores da revista inglesa é muito, mas muito diferente mesmo das suas similares no Brasil, principalmente as mais vendidas – VejaÉpoca e Istoé – que cometem crimes contra o jornalismo decente praticamente todas as semanas. Em 143 anos de história, a Economist nunca embarcou em tentativas de golpe, nem deu capa para vazamentos vindos do esgoto do poder. Se um dia errou, como no caso em que acreditou na versão criada pelo governo de George Bush sobre as armas de destruição em massa que Saddam Hussein, pede desculpas aos seus leitores sempre que toca no assunto. E mais: o pedido de desculpas não sai escondido no pé de uma página par, que poucos leitores leem, mas no mesmo espaço dedicado às notícias. Questão de honestidade intelectual que praticamente inexiste nas mais vendidas revistas semanais brasileiras.

Não por acaso, a única revista nacional autorizada a reproduzir a Economist é a Carta Capital, a única semanal do campo da esquerda

Toda essa introdução (o tema permitiria ir muito mais longe) foi feita para justificar porque é importante o resumo da Economist desta semana sobre o relatório da Comissão Nacional da Verdade. É essa a versão que está sendo considerada nos gabinetes mais poderosos do mundo.

Leia abaixo uma livre tradução da reportagem.

O cômputo final– Economist – 13/12/2014

Uma investigação sobre abusos dos direitos humanos traz nomes dos culpados, mas vem tarde demais

Para um país com presidentes recentes que sofreram nas mãos do regime militar que governou o país entre 1964-1985, o Brasil tem sido muito lento para sondar este triste capítulo de sua história. Dilma Rousseff, a titular, foi torturada. Seus dois antecessores imediatos, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, foram, respectivamente, preso e forçado ao exílio. Em 10 de dezembro, depois de quase três anos de investigações, a Comissão Nacional da Verdade apresentou o seu relatório sobre os abusos aos direitos humanos cometidos durante 1946-1988, com especial atenção para os anos de ditadura. “O Brasil merece a verdade”, disse Dilma Rousseff, que chorou ao receber o relatório.

A publicação, de 4.400 páginas, destaca-se entre esforços similares ocorridos em outros países. Ela relaciona 377 indivíduos, responsáveis ??por 434 assassinatos políticos e desaparecimentos, e inclui todos os oito presidentes militares e o alto escalão, bem como asseclas que executaram as suas ordens. Seus crimes foram atos deliberados de política, não excessos ocasionais, o relatório deixa claro.

Os culpados, em sua maioria, estão mortos ou na velhice. Sob uma lei de anistia promulgada em 1979 (para beneficiar dissidentes exilados) poucos vão enfrentar julgamento. A comissão espera que seu relatório gere uma reconsideração da anistia, que agora cai em desgraça diante dos  tratados de direitos humanos. Mas, por agora, o simbolismo deve ser suficiente. Embora nenhum substitua a justiça, admite José Miguel Vivanco, da Human Rights Watch, um grupo de lobby sediado em Nova York, “é um começo”.

A decisão de dar nome aos bois não é inusitada: El Salvador o fez em 1993. No caso do Brasil, é mais fácil, porque a espera foi tão longa. As comissões da verdade são normalmente estabelecidas logo depois (muitas vezes desordenada) do colapso dos regimes – muitas vezes como o primeiro passo para a reconciliação. No Brasil, um dos últimos da lista, a verdade vem à tona quase 20 anos depois das primeiras reparações concedidas às famílias das vítimas.

Oscar Vieira da Escola de Direito FGV (Fundação Getúlio Vargas), em São Paulo atribui isso a propensão do Brasil para as transições “lentas e constantes”. Mesmo o golpe militar foi um assunto negociado, de comum acordo entre as elites militares e os homens de negócios para cortar a cabeça do que eles viam como um desvio em direção ao socialismo. Durante o restabelecimento da democracia. o Brasil evitou expurgos; só em 1999 teve seu primeiro ministro civil à frente da Defesa. Só depois que a velha guarda saiu de cena a busca pela verdade pôde começar.

Dois terços dos brasileiros de hoje não tinham nascido, quando a repressão militar atingiu o pico na década de 1970. Muitos dos que estavam vivos, em seguida, lembram mais do boom econômico da época, do que os crimes dos generais. O Brasil tem número modesto de violações, ao lado dos 2.000-3.000 assassinatos e desaparecimentos no Chile e dos 10,000-30,000 da Argentina. A Polícia do Brasil matou 2.212 pessoas no ano passado. As forças armadas são populares.

Talvez por estas razões, os militares não cooperaram com a Comissão da Verdade, que pôde convocar soldados que serviram o regime como oficiais subalternos, mas não obrigá-los a falar. A maioria permaneceu em silêncio, lamenta Pedro Dallari, presidente da comissão. Eles também alegaram que muitos documentos relevantes tinham sido destruídos.

Ao contrário dos seus homólogos chilenos e argentinos, no Estado brasileiro os generais se recusam a reconhecer os pecados de seus antecessores, e muito menos se desculpar – seja por causa do equivocado corporativismo, seja por causa da crença de que os crimes eram justificados porque foram cometidos para defender o país contra a ameaça vermelha. Em cartas ao ministro da Defesa, em agosto passado, os três chefes de Armas do Brasil não negaram erros do passado. Mas eles não chegaram a admitir culpa. A menos que eles façam isso, nenhuma verdade vai garantir a completa reconciliação.

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