“E como se quisessem pegar uma criança de oito anos de idade e colocar nela a roupa de um bebê de seis meses”, resumiu o senador Humberto Costa (PT-PE)A linguagem rebuscada, em economês, parece um recurso ensaiado para que o menor número possível de pessoas compreenda o que está em discussão. A “erudição” parece ser usada como arma deliberada pela principal testemunha convocada pelos golpistas para tentar justificar o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Se a ideia era essa, o procurador do Tribunal de Contas da União (TCU) Júlio Marcelo de Oliveira, cumpriu seu objetivo.
Some a essa linguajar empolado o rolo compressor a que estão submetidos os parlamentares que se esforçam em demonstrar que todo o processo é uma grande farsa – e que, em vários casos, é inútil insistir em mostrar a verdade dos fatos, pois esses parlamentares integram a comissão apenas para cumprir tabela e que seus votos pelo impeachment já estão decididos há tempos, aconteça o que acontecer, seja qual for a prova apresentada em contrário.
O técnico do TCU considerado uma das principais testemunhas da acusação na Comissão Especial do Impeachment. Foi ele quem assinou a representação pedindo a investigação das chamadas “pedaladas fiscais”. Também foi ele quem testemunhou contra o governo no dia 02 de maio, na mesma comissão de impeachment que o convoca, agora, em outra condição.
Foi Júlio Marcelo, ainda, quem, na ocasião, desrespeitou a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), chegando a dizer que o TCU não é “babá” do Governo Federal, esquecendo-se que, por exigência legal, cabe ao órgão informar ao governo federal sobre indícios de irregularidades. Nesta quarta-feira (08), não foi diferente. O depoente continuou dando poderes ao TCU que ultrapassam sua definição constitucional – a de órgão consultor do Senado. Segundo ele, era obrigação de Dilma Rousseff, como Chefe do Executivo, saber que havia uma dívida do Tesouro com os bancos federais. “Ela é responsável pela gestão das finanças públicas do País”, atacou. Ao que ouviu a pronta resposta da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), dizendo que a presidenta Dilma não poderia “ter sido informada pelos jornais”. O técnico do TCU, mais uma vez, se calou n- e foi prontamente socorrido pelos senadores pró-impeachment.
Segundo Júlio Marcelo, outra denúncia contra Dilma, a da assinatura de decretos suplementares sem autorização do Legislativo, foi ilegal porque, segundo interpretou, “não há a menor dúvida de que ela estava ciente de que a meta fiscal não estava sendo cumprida no momento”. Mais uma vez, repetiu: cabe ao chefe do Executivo “ter conhecimento do descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal e das dívidas com os bancos federais”. Repetiu a acusação com cinismo, por uma das atribuições do TCU é justamente fazer esses alertas. Mas nenhuma dessas supostas irregularidades foram apontadas em qualquer relatório do TCU.
Roupa apertada
O procurador voltou a admitir que as ditas “pedaladas fiscais” foram identificadas em 2014 e, a partir daí, começou uma auditoria nas instituições financeiras. Essa auditoria teria identificado que essas instituições estariam funcionando como um a espécie de “cheque especial do governo”. Ele disse que esse comportamento teria ocorrido em 2014. Mas, em relação aos Bancos do Brasil, Safra e BNDES se estenderam por 2015. Isso, segundo o procurador do TCU, caracterizaria descumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A testemunha também assegurou que todas as dívidas do Tesouro Nacional devem ser registradas, mas as dívidas relativas a repasses não concretizados, como as do Plano Safra, não tiveram registro.
Quando o senador Humberto Costa (PT-PE) pressionou para saber por que o Banco do Brasil não reagiu ou se recusou a seguir operando, uma vez que o atraso nos repasses do Tesouro para quitar as operações do Plano Safra eram suficientemente grandes e custavam tanto para a instituição financeira carregar e geravam prejuízo, o técnico se esquivou. “Por que o Banco do Brasil se mantém nisso eu não tenho condição de opinar. Talvez porque há remuneração de juros; talvez porque é um banco público e não tem a liberdade de fazer essa escolha”
Humberto deixou a erudição de lado e foi direto: “acho que continua evidente que se trata de forçar a barra, tentar caracterizar essa relação União/Plano Safra/Banco do Brasil como uma operação de crédito. É como se quisessem pegar uma criança de oito anos de idade e colocar nela a roupa de um bebê de seis meses”, comparou o senador.
Lindbergh Farias (PT-RJ) acrescentou que a acusação não conseguiu provar os crimes da presidente afastada Dilma Rousseff. “É uma loucura o que está acontecendo aqui”, estranhou. Ele diz que o TCU é um órgão auxiliar, e o que vale é a decisão do Congresso. “A última decisão do Congresso sobre alteração de meta e emissão de crédito suplementar é de 2009 e é contrária ao entendimento do TCU, permitindo as ações da presidente Dilma Rousseff”, concluiu.
A senadora Fátima Bezerra (PT-RN) colocou a testemunha de acusação contra as cordas. Primeiro, perguntou a ele quem elaborava um decreto de crédito suplementar. Júlio Marcelo respondeu que eles decorrem de um diagnóstico de múltiplos órgãos de uma necessidade suplementar.
A parlamentar questionou, então, se quando o próprio TCU pediu suplementação orçamentária estava sendo incoerente. “Está cada vez mais evidente que não há ato de vontade exclusiva da presidente na edição de um decreto suplementar. Então, não há que se falar em crime cometido pela presidenta,” concluiu Fátima, sem reação.
Cansados por terem se mantido durante toda a oitiva da testemunha de acusação, ao contrário da maioria pró-impeachment que se revezou para relaxar e se alimentar, os senadores que defendem a presidenta na comissão, representados por Lindbergh Farias, pediram a suspensão da reunião e sua retomada para a manhã desta quinta-feira, para que todos pudessem se ausentar para comer. O presidente da comissão, Raimundo Lira (PMDB-PB) negou o pedido, ofereceu um lanche em compensação, chamando a próxima testemunha de acusação.
Giselle Chassot
Entenda do que Dilma é acusada:
Assinatura de quatro decretos de suplementação orçamentária em 2015
A acusação: Assinatura de decretos de crédito suplementar em 2015 ocorreu sem a autorização do Congresso e foram emitidos depois de julho, quando o Governo já havia admitido que não conseguiria cumprir a meta fiscal do ano. Considera-se que a conduta desrespeita Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, que passou a fazer parte do escopo da Lei do Impeachment, ligadas aos artigos 10 e 11: é crime de responsabilidade atentar contra a lei orçamentária e contra “a guarda e o emprego legal dos dinheiros públicos”.
Defesa: Os decretos, no valor de R$ 96 bilhões (R$ 2,5 bilhões baseados em receita nova), não ampliaram, apenas remanejaram gastos. Dilma assinou os decretos por solicitação de órgãos do Judiciário, e até do Tribunal de Contas da União (TCU), e apenas após avaliação do corpo técnico. Ainda que houvesse algo de errado, não haveria má fé da presidenta, e, portanto, razão para o impeachment. Os governistas consideram que os decretos não precisariam ter aval do Congresso.
Pedaladas de 2015
Acusação: O governo atrasou o repasse de 3,5 bilhões de reais ao Banco de Brasil para pagamento do programa de crédito agrícola Plano Safra. Com o atraso, o BB pagou os agricultores com recursos próprios. A prática é vista como pedalada fiscal (tentativa de maquiagem fiscal), porque o governo teria tomado empréstimos de um banco estatal, o que é vetado por lei. O descumprimento de normas fiscais e a falta de transparência nesse campo sinalizariam, de acordo com a acusação, a deterioração das contas públicas e, no limite, o risco de insolvência do país.
Defesa: As pedaladas fiscais são, simplesmente, atrasos em pagamentos, e não configuram empréstimos. O Tribunal de Contas da União ainda não se manifestou sobre possíveis pedaladas nesse caso, porque não julgou ainda as contas do governo de 2015.?