A queda-de-braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal tem produzido fricções em série. Como a da nota conjunta com o vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, divulgada na noite de sexta (12) depois de decisão do ministro Luiz Fux delimitando o alcance do poder do chefe da República sobre as Forças Armadas.
O magistrado decidiu, liminarmente, que é “limitado” o poder de chefia do presidente sobre os militares, não podendo utilizá-los para “indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes“. Também definiu que, de acordo com Constituição, as Forças não têm a prerrogativa de atuar como poder moderador entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Para Bolsonaro, o entendimento do ministro “bem reconhece o papel e a história das Forças Armadas sempre ao lado da democracia e da liberdade“. Mas lembrou que é “autoridade suprema” sobre Exército, Marinha e Força Aérea, e ponderou que as Forças “não cumprem ordens absurdas, como p. ex. a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos“.
O recado poderia ser endereçado também a outro ministro do STF, Alexandre de Moraes, que na segunda (8) mandou o Ministério da Saúde voltar a divulgar o número total de casos confirmados e de mortes por Covid-19 diariamente no site da pasta, após tentativa malsucedida do governo de escamotear os dados, exibindo apenas informações colhidas no período de 24 horas, no fim da semana anterior.
“A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, consagrou expressamente o princípio da publicidade como um dos vetores imprescindíveis à Administração Pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a Sociedade”, defendeu Moraes.
No dia 5 de junho, o portal do Ministério da Saúde (MS) com dados sobre a pandemia de coronavírus no país ficou fora do ar. O site voltou a funcionar só no dia seguinte, mostrando apenas os casos registrados no dia – ficaram de fora o número total de mortos e contaminados pela doença e o histórico dos dados. Na segunda, o órgão anunciou que cumpriria a ordem do ministro, mas com destaque para números do dia.
Em resposta, se intensificaram iniciativas da sociedade civil para divulgação dos dados omitidos pelo governo: repositório de dados, boletins e painéis com os números da doença. Até mesmo grandes veículos de imprensa anunciaram uma parceria para divulgação de números completos sobre o novo coronavírus no Brasil.
O que Bianca Leandro, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/ Fiocruz), considerou “extremamente válida”, embora a responsabilidade seja do governo. “Obstruir acesso a esses dados, nesse momento, é colocar em risco a vida das pessoas”, afirma a professora.
Os dados acumulados, segundo a especialista, são importantes para saber como está a evolução da doença no país, e, a partir disso, fazer estimativas e direcionar políticas públicas. “Então, isso afeta a realização de estudos e pesquisas sobre a situação dessa doença no Brasil. E eu acho que é muito grave também, pois nega à população o direito de saber o estágio da epidemia, porque o acesso à informação é essencial para nós tenhamos engajamento da sociedade na adesão das medidas preventivas.”
O Brasil IO, repositório de dados públicos fundado em 2018, disponibiliza uma série histórica de casos e óbitos confirmados por município desde o início da pandemia, em março. Depois que o MS deixou de publicar os dados completos, eles passaram a editar um boletim diário de casos da doença. Álvaro Justen, fundador do site, conta que percebeu ainda em março que “não dava para contar com o Ministério da Saúde”. Na época, no início da pandemia, o site do órgão ficou fora do ar por uma semana.
Para Fernanda Campagnucci, diretora da Open Knowledge Brasil, organização que promove a transparência e o conhecimento livre, o governo federal está ocultando os dados para evitar críticas. “É uma forma de maquiar mesmo a situação para parecer que ela é menos grave do que é”, explica a ativista. “Sabemos que negar os fatos e ocultar os dados é um modus operandi.”
“Existe uma tradição do Estado brasileiro de ampliar a transparência, mas o que a gente está vendo deste governo é um caminho contrário”, afirma Fernanda. Levantamento da Agência Pública corrobora com essa hipótese, mostrando que a quantidade de pedidos de acesso à informação negados quintuplicou em 2019 em relação ao ano anterior.
Campagnucci acusa o governo Bolsonaro de fazer “ameaças constantes de deixar de produzir informação sempre que essa informação desagrada ao invés de criar política pública para atacar o problema.”
O fundador do Lagom Dados, Marcelo Soares, previu esse “apagão de dados” antes de Bolsonaro assumir a presidência. “Quando saiu o resultado das eleições eu comprei um HD só para fazer backup de dados públicos. Conhecendo a atuação do então deputado eu imaginava que haveria a tentativa de cercear o acesso aos dados. Eles só gostam da informação que os enaltece”, diz. Ele reafirma, contudo, que enquanto os estados disponibilizarem os dados ele vai continuar publicando “mesmo que o inquilino do Alvorada consiga castrar as informações”.
A diretora da Open Knowledge reconhece que a questão técnica pode prejudicar a transparência, mas pontua que “existe um teor de vontade política grande para fazer isso acontecer”. “Posicionamentos contrários à transparência não são técnicos, são políticos”, defende.
Censura à meningite
A controvérsia envolvendo as tentativas do governo Bolsonaro de omitir ou mesmo mascarar informações remete a um episódio ocorrido nos anos 1970, em plena ditadura militar. Foi quando a omissão das autoridades possibilitou o alastramento da maior epidemia de meningite da história do país.
A propagação teve início em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Logo, a população mais carente começou a se queixar de sintomas clássicos, como dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em novembro daquele ano, o que parecia ser um surto restrito a uma localidade logo se alastrou e, aos poucos, ganhou proporções epidêmicas. A doença atingiu todos os bairros da cidade de São Paulo e registrou a média de 1,15 óbitos por dia.
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu o ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes. Algo semelhante só se via no “Cinturão Africano da Meningite”, área que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia.
“Não houve quarentena porque o período de incubação da meningite é muito curto”, explicou à ‘ BBC Brasil’ a epidemiologista Rita Barradas Barata, doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.
Até então, uma pequena parcela da população, quase nula, sabia da existência da epidemia. Sob o pretexto de não causar pânico na população, a censura proibiu toda e qualquer reportagem que julgasse “alarmista” ou “tendenciosa”, sobre a moléstia.
“Assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença”, afirma a jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora da tese ‘A Construção Discursiva dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo sobre a Epidemia de Meningite na Ditadura Militar Brasileira (1971-1975)’. “Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas”.