Quem duvidaria da palavra de um ex-Procurador Geral da República quando confessa ter desejado matar um Ministro do Supremo? Afinal, Janot não só revelou o inconfessável, mas deu detalhes hediondos, atiçando a imaginação dos desconfiados e ocupando o noticiário às vésperas do lançamento de um livro de memórias.
Ato considerado desastroso pelos pares, as opiniões se dividem. Corre solto que, ébrio, não pensou antes de agir, versão ilustrada pela frase “keep calm and drink gim” postada pelo próprio Janot no perfil do whatsapp. Se assim for, alcoolismo é coisa séria e não merece descrédito já que, como ouvi por aí, poderia até ser um inusitado pedido de socorro. Também há quem diga que o ex procurador precisa de um exame psiquiátrico. E há quem o trate como uma espécie de terrorista, avançando o sinal das garantias para buscar e apreender o resto de sua reputação.
Deixando de lado as causas imaginarias para um duplo “cogito”, na linguagem penal, de cometer homicídio e suicídio, a carreira do ex procurador está longe da demência. Ao contrário. É notável a coerência e sistematicidade da Operação Lava Jato, chefiada por ele após atravessar carreira exemplar no Ministério Público, tendo sido indicado com ampla margem de votos a ocupar o primeiro lugar na lista tríplice e, ironicamente, ser nomeado pela Presidenta Dilma Rousseff no acordo republicano que regia as relações entre poderes.
O episódio da nomeação mereceu destaque no livro recém-lançado, com reiterada menção ao gosto pelo álcool e certa deferência à ex-mandatária. Não mereceu registro, porém, a traição que se seguiu. Bacante ou não, Janot regeu os tempos do processo de cassação de Dilma, denunciando-a perante o STF um dia antes do julgamento da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados e incendiando o golpe parlamentar, sincrônico à ofensiva da Lava Jato contra Lula.
Um ano antes de encalçar a destituição de Dilma, em fevereiro de 2015, Janot liderou uma crucial e pouco revelada viagem aos Estados Unidos para, como noticiado à época, retribuir uma visita do diretor do FBI à Procuradoria da República. A comitiva, formada por Deltan Dallagnol, Carlos Fernando dos Santos Lima, Vladmir Aras e Marcello Muller, visitou o Departamento de Justiça e a Securities and Exchance Comission (SEC), órgão regulador do mercado de capitais daquele país. As autoridades americanos buscavam apurar se funcionários da Petrobras haviam violado o Ato de Práticas Corruptas no Exterior (Foreign Corrupt Practices Act – FCPA), lei norte-americana que busca coibir que companhias (americanas ou estrangeiras) façam pagamentos a funcionários de governo em troca de vantagens a seus negócios.
Há quem diga que Janot e a treinada equipe de procuradores, atendendo a interesses de acionistas minoritários da Petrobras, abriu as portas para a colaboração formal e informal a fim de atender aos interesses de outras soberanias, contribuindo substancialmente para o alcance do acordo de leniência entre a Petrobras, a Seção de Fraudes da Divisão Criminal do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a Procuradoria da República do Distrito Leste do Estado da Virginia, um acordo extremamente lesivo à imagem a ao patrimônio da estatal, no montante de US$ 853.200.00, dos quais US$ 170.640.000 foram destinados ao Tesouro dos EEUU e à Securities and Exchance Comission e o restante, cerca de 2,5 bilhões de reais, destinados ao Brasil mediante “acordo entre autoridades brasileiras”.
O acordo de leniência somente veio a público no inicio de 2019, quando ficou conhecida a intenção dos procuradores de Curitiba, que faziam parte da comitiva de Janot, de criarem uma fundação privada para administrar os R$ 2,5 bilhões. Raquel Dodge, Procuradora Geral que acobertou muitas ações duvidosas da Lava Jato, ficou sem saída e reagiu duramente, protocolando ação no STF por entender que a iniciativa traz “lesão a direitos fundamentais e estruturantes da República” e “ofende gravemente a configuração constitucional do MPF”.
De lá pra cá, inúmeros acordos de leniência ocorreram em sigilo. Num deles, em que foi negociada a reponsabilidade da Odebrecht junto a autoridades dos Estados Unidos e da Procuradoria Geral da Suíça, sabe-se que os valores são bastante maiores, R$ 8,5 bilhões a serem destinados aos procuradores de Curitiba, mas as condições e contrapartidas têm seu o conteúdo mantido em sigilo por decisão do então juiz Sérgio Moro.
Eis que chegamos ao famoso Ministro da Justiça, o que era juiz, que reiteradamente negou acesso aos documentos que revelam o maior escândalo de cooperação informal e criminosa da história do país, do qual pouco sabemos, mas cujas evidencias são cada vez mais notórias. E como convém suspeitar de coincidências, registre-se que Moro tenta regularizar, a posteriori, os efeitos da comprometida cooperação internacional por meio da proposta, no Projeto Anti Crime, de atribuir definitivamente competência ao MPF e à polícia federal para formar equipes e conduzir investigação de crimes transnacionais, sem a necessidade de forma especial e com autorização de funcionamento via Decreto.
Sabemos muito pouco de tudo que se esconde por meio de sigilos, silêncios e ameaças mortíferas. O que sabemos é que ações judiciais estão sendo movidas nos Estados Unidos para conhecer a responsabilidade de funcionários públicos que viabilizaram a influencia indevida de autoridades estrangeiras em assuntos internos do Brasil, bem como de procuradores e outras autoridades que, violando o Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal entre o Governo do Brasil e dos Estados Unidos (de 1997), arrogaram competências de outros poderes para lesar os interesses nacionais.
Talvez, nesse imenso jogo de cena, procuradores da Lava Jato comecem a recuar. Talvez até mesmo o Supremo Tribunal Federal tome coragem e encontre a fórmula para restituir a legalidade depois de tantos abusos. Quem sabe, depois de ingerir café com sal, Rodrigo Janot tenha pensado melhor e decidido se antecipar ao que vem pela frente, oferecendo a sua versão com doses de inimputabilidade. E ainda que o livro não mereça o título, a sociedade brasileira merece conhecer nada menos que tudo.
Carol Proner – Doutora em Direito Internacional, Membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia- ABJD