Horas depois de um deprimente e ameaçador passeio de tanques de guerra na Esplanada dos Ministérios, o Congresso Nacional revogou a Lei de Segurança Nacional (LSN) – o último dos chamados “entulhos autoritários” –, criada durante a ditadura militar para dar caráter legal a perseguições políticas típicas de regimes autoritários.
“É uma decisão histórica! Um dos mais importantes avanços democráticos dos últimos anos no país. Essa Lei era incompatível com a Constituição Federal de 1988”, comemorou o relator da proposta, senador Rogério Carvalho (PT-SE).
Além de revogar a Lei de Segurança Nacional, a iniciativa (PL 2.108/2021) cria um capítulo no Código Penal para tipificar crimes contra o Estado Democrático de Direito. O projeto foi aprovado em votação simbólica e dois destaques apresentados ao texto foram rejeitados. Assim, segue agora à sanção presidencial.
“É a oportunidade que temos de mostrar que nenhum governo terá autorização pra agir no excesso. Significa valorizar a democracia e derrotar o autoritarismo”, afirmou, em clara referência ao movimento militar realizado pela manhã, quando veículos blindados das Forças Armadas desfilaram por Brasília.
Era uma tentativa de demonstração de força de Bolsonaro ao Congresso diante da iminente derrota da PEC do voto impresso na Câmara, obsessão recente do governo a servir de pretexto para colocar em dúvida uma possível derrota em 2022.
“Não existe justiça possível sem o devido respeito a liberdades individuais”, continuou Rogério Carvalho. “A Lei de Segurança Nacional foi submetida ao esquecimento por décadas quando, nos últimos tempos, foi recuperada do fundo da gaveta e promovida pelo atual governo para calar a crítica, como as ações contra Felipe Netto e o cartunista Aroeira, entre outros”.
Proteção da Democracia
A criação, na mesma decisão, do Título XII no Código Penal impediu que alguns crimes ficassem descobertos de previsão legal, como o ataque a manifestações pacíficas ou a disseminação em massa de fake news, entre outras ameaças à estabilidade da democracia.
O novo título leva o nome “Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito” e terá cinco subdivisões:
Os “Crimes contra a Soberania Nacional” são aqueles de atentado à soberania, atentado à integridade nacional e também de espionagem. Já os “Crimes Contra as Instituições Democráticas” abarcam crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Há ainda os “Crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral”, que incluem delitos de interrupção do processo eleitoral, comunicação enganosa em massa (fake news) e violência política.
Já os “Crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais” são aqueles enquadrados como sabotagem, enquanto que os “Crimes contra a cidadania” são os atentados ao direito de livre manifestação.
Este último rendeu debate mais extenso por ser objeto de destaque para votação em separado pelo Pros e Podemos. Eles queriam impedir que fosse considerado crime ação de repressão a manifestações pacíficas alegando que invasões de propriedades privadas pudessem ser estimuladas. Mas o destaque foi rejeitado pelo Plenário.
“Não há democracia se não houver o livre direito à manifestação. Eu sou fruto disso. Há uma fantasia dde que o direito de liberdade de expressão significa usurpar a propriedade. Mas já há um conjunto de leis que protegem a propriedade e que proíbem a violência.
Ao elogiar o relatório de Carvalho, o líder da Minoria, Jean Paul Prates (PT-RN) celebrou a revogação do texto ditatorial. “É uma importantíssima missão relatar o fim da Lei de Segurança Nacional, pretexto de tantos abusos e tantos absurdos, justamente nessa data, que infelizmente veio com a coincidência de vermos tanques marchando em frente ao Congresso Nacional. Viva a democracia viva! Viva o Congresso Nacional!”
“Temos que agir”, diz líder
Pouco antes da revogação da LSN, o líder do PT no Senado, Paullo Rocha (PA), rechaçou o infame desfile de tanques na Esplanada ocorrido horas antes.
“Todos estamos vendo as dificuldades do país, na questão econômica, no desemprego, no preço do gás, da gasolina, e isso é responsabilidade do governo, mas que se transformou em um desgoverno, pela visão negacionista, desde a negação da ciência até a negação do papel das instituições, primeiro do STF e agora do Congresso Nacional”, afirmou.
“Quem não conhecia Bolsonaro? Fui deputado por 20 anos com ele, nosso gabinete era até vizinho, e ele pregava só isso: golpe militar, ódio, política de enfrentamento, é antidemocrático, preconceituoso. Só quem votou nele não sabia disso?”, questionou, ao convocar todos os partidos democráticos para resistir ao arroubo autoritário do presidente.
“Temos que agir, todos os partidos democráticos, e enfrentar as atitudes autoritárias, chamar a atenção dos setores organizados da sociedade, centrais sindicais, federações patronais, grupos de comunicação. Somos responsáveis pela democracia do nosso país”, concluiu.
Entidades comemoram
Entidades da sociedade civil que participaram dos debates sobre o fim da LSN comemoraram a decisão histórica.
“A revogação da LSN é imprescindível e urgente pelo perigo que ela representa à nossa democracia. A sobrevida desta coloca em xeque a liberdade de manifestação e imprensa ao conferir ao atual governo os instrumentos necessários para intimidar críticos, perseguir adversários políticos e calar vozes dissidentes”,declarou Maria Eduarda Pessoa de Assis, assessora jurídica do Instituto Igarapé.
Para ela, o projeto aprovado, “apesar de não ser o ideal, representa um progresso em relação à norma em vigor e contou com importantes contribuições de organizações da sociedade civil, juristas e acadêmicos”.
Já Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), considerou a revogação histórica, mas disse que é preciso ficar alerta para possíveis vetos do presidente. “Caso vetado pelo presidente, caberá ao Congresso reafirmar a hegemonia do regime democrático, enterrando o veto e as aspirações autoritárias de Bolsonaro”, afirmou.