Enquanto Jair Bolsonaro estica e puxa com Judiciário e Legislativo os limites para sua corrida armamentista, armas cada vez mais poderosas vão sendo inoculadas na sociedade brasileira, como um vírus. Na origem do descaminho estão desvios ocorridos com armas de particulares, de forças de segurança pública e de empresas de segurança privada. Estas últimas perderam 12 mil armamentos de variados calibres nos últimos cinco anos.
Os números, que representam sete armas desviadas a cada dia, foram levantados pela agência Fiquem Sabendo a pedido do El País, mas a entidade ressalta que as perdas podem ser maiores, devido à subnotificação de casos. A Polícia Federal, responsável por controlar o setor, deixou sem respostas os questionamentos da reportagem sobre o número de armas recuperadas ou os resultados das investigações.
No dia a dia, são as polícias civis que, isoladamente, registram as ocorrências, mas raramente as investigam. “É inadmissível que uma empresa que tenha autorização para operar e estocar grandes quantidades de armas de fogo e munição perca esse material nessa quantidade e nessa frequência”, critica Ivan Marques, presidente da Control Arms, coalizão de organizações ligadas ao tratado de Genebra sobre comércio de armas.
Marques afirma que a perda de armas por vigilantes, a negligência no controle de arsenais e seu manejo precário em eventuais falências dessas empresas tem sido recorrentes. “Isso cria um canal direto de migração de armas legais ao mercado ilegal.”
Segundo o ativista, 246.511 armamentos estão nas mãos de funcionários de 3.603 empresas de segurança. No Brasil, oito em cada dez pessoas são assassinadas com armas de fogo. Apenas dez estados levantam dados sobre investigações, autores e número de crimes resolvidos, e neles apenas um terço das mortes são elucidadas.
No Rio de Janeiro, onde se apreende uma arma por hora, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) realizada em 2015 concluiu que a principal fonte de desvio de armas no estado eram as empresas de segurança privada. O material enviado pela Polícia Federal à comissão revelou que 17.662 armas foram roubadas, furtadas ou perdidas entre 2006 e 2015, o equivalente na época a um terço das armas das empresas. De 2017 pra cá, mais de 500 armas desapareceram dos arsenais das empresas no estado.
“Estes problemas já foram mapeados e as soluções apontadas. As medidas de controle precisam ser fortalecidas. Mas, com Jair Bolsonaro, o pouco que se fez caiu por terra”, lamenta Isabel Figueiredo, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lembrando que a questão é particularmente grave quando se fala de empresas de segurança. “O controle é mínimo. Não há uma lógica de política pública que prioriza o assunto.”
Faltam fiscalização e sanções efetivas
Segundo os dados do Fiquem Sabendo, em cinco anos foram instaurados 23.283 processos para investigar o destino de armas roubadas, extraviadas ou perdidas. A imensa maioria das sanções terminou em multas e advertências. Houve 516 cancelamentos de licença e 4.829 processos foram arquivados.
Para Isabel Figueiredo, falta fiscalização efetiva. “Não é só instaurar o processo. É preciso pesar a mão na sanção”, defende. “Quando a gente fala de empresa de segurança, falamos também de empresas que não são sérias e negociam armas, são laranjas e alimentam esse mercado.”
A própria Polícia Federal, responsável por regular e investigar os sumiços de armas, teve mais de 400 armas extraviadas em pouco mais de 11 anos. Cerca de 20% delas desapareceu dos estoques da Superintendência do Rio. A PF de São Paulo aparece em segundo lugar no ranking, seguido do Distrito Federal e Pará.
Também foram extraviadas munições. Em 2018, balas que desapareceram dos paióis da PF foram usadas para executar a vereadora carioca Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes. Passados mais de três anos, o crime segue sem solução.
A agência de dados descobriu ainda que nos últimos cinco anos foram extraviadas 363 armas de fogo no estado de São Paulo. Dessas, 96 eram da Polícia Militar e 267 da Polícia Civil. Em Minas Gerais, 36 armas de fogo foram extraviadas de 1º de janeiro de 2017 a 31 de maio de 2021 em unidades da Polícia Civil. A Polícia Militar não deu informações.
Já o grupo de atiradores, caçadores e colecionadores (CACs) notificou o Exército sobre roubo ou furto de 5.808 armas entre 2010 e 2016, quando a categoria ainda nem tinha sofrido uma explosão do número de adeptos, estimulados pelo discurso bolsonarista.
“O arsenal de armas e munições autorizado para CACs preocupa sobremaneira porque as munições vendidas a particulares no Brasil não são marcadas, o que impede rastrear o destino que recebem após a aquisição. Permitir que atiradores tenham 60 armas para praticar o esporte e que colecionadores tenham até 5 armas do mesmo modelo ignora o grave problema de desvio de armas de fogo e munições no país”, afirmou o Instituto Sou da Paz em nota divulgada no fim do ano passado.
“A sociedade fica inundada com novas armas de fogo. Há uma ligação do mercado legal com o ilegal por meio de roubos, esquemas com clubes de tiro e colecionadores mal intencionados. Um aumento no mercado legal acaba elevando o número de armas em circulação no mercado ilegal também. Pesquisas mostram que quanto mais armas, mais fácil é para criminosos obterem armas “, argumenta Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No primeiro semestre deste ano, 97.243 novas armas foram registradas pela PF, 78% delas cadastradas na categoria cidadão (pessoas físicas comuns). Em relação ao primeiro semestre de 2020, quando foram registradas 73.985 novas armas, o crescimento foi de 31%.
“É como se de alguma forma tivéssemos uma parte do sistema de segurança que se acomodou no discurso de que as armas entram pelas fronteiras, contrabandeadas, e se esquecem que isso não é verdade”, pontua Isabel, lembrando que cerca de 40% das armas apreendidas pelas polícias são de origem legal e produzidas no Brasil.