Nessa quarta-feira, o plenário da Câmara Federal aprovou o texto-base do projeto de lei (PL 3.179/2012), que regulamenta a prática da educação domiciliar (homeschooling) no Brasil. Caso aprovado, o também chamado “ensino doméstico” vai ampliar ainda mais a desigualdade do acesso à educação em todo país. Quem tem dinheiro, poderá pagar professores para ensinar em casa, enquanto à população mais pobre restará um ensino precarizado, sem socialização, que poderá se tornar o caos.
Esta é a avaliação de Rosilene Correa, pedagoga e dirigente da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e do SinPro-DF (Sindicato dos Professores do Distrito Federal). “É a volta à idade média, quando quem podia pagar tinha aulas em casa com um tutor”, salienta.
O homeschooling (ensino doméstico) é mais um capítulo da agenda ideológica sem base racional e científica do governo Bolsonaro, com viés conservador e fundamentalista. “A aprovação do regime de urgência para sua tramitação mostra que, na verdade, a urgência está na mudança do perfil parlamentar do Congresso Nacional, que precisa ocorrer em 2022”, pontua professora Bebel (PT-SP), deputada estadual e presidenta da Apeoesp.
As mulheres parlamentares e dirigentes petistas estão em diversas frentes para impedir esse retrocesso, que além de prejudicar o futuro de crianças e adolescentes tem impacto direto na vida das trabalhadoras, sobretudo das mulheres negras. “Elas já sofrem com o racismo para conseguir espaço no mercado de trabalho. Correrão o risco de não ter escola pública de qualidade para colocar os filhos e viveremos em um país que condena famílias inteiras ainda mais à baixa escolarização e à vida precária”, aponta Anne Moura, secretária nacional de Mulheres do PT.
Interesses ocultos: privatização
Primeiro, trata-se de um processo de privatização dos ensinos fundamental e médio, com lobby e atuação de grupos privados, ao mesmo tempo em que se precariza ainda mais o investimento em educação pública. “É uma postura conservadora, individualista e exclusiva que visa, na verdade, elitizar e privatizar ainda mais a educação no Brasil, ao invés de valorizá-la como bem público, melhorando a sua qualidade para todas e todos”, reforça Rosilene Correa.
O Brasil não cumpre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e ainda está muito distante de alcançar as metas do Plano Nacional de Educação em vigor. “A universalização segue precária, sobretudo na educação infantil, e as escolas, espaços privilegiados de socialização e interação, e parte indispensável do processo de aprendizagem, necessitam de mais estrutura, não de alternativas caseiras que visam a atender nichos radicalizados do eleitorado bolsonarista”, denuncia Bebel.
Ataque ao pensamento crítico
A escola é concebida para socializar as crianças, transmitir valores e aquilo que a sociedade quer que a criança tenha como referência de vida para o futuro. Quando a criança é privada do convívio coletivo e da socialização, ela está ainda mais suscetível a reforçar preconceitos, a não ter respeito pelas diferenças, tampouco a ser empática e perseverante, apontam as especialistas. “Trata-se de um movimento estratégico para a aplicação da agenda conservadora e fundamentalista no país, tanto aqui no Brasil quanto nos Estados Unidos esse projeto de poder neopentecostal segue em curso”, afirma Anne Moura.
Os conservadores deturpam o debate dizendo que a educação está nas mãos dos profissionais de esquerda, sendo que, na verdade, são eles que querem impor uma educação limitadora, conservadora e profundamente ideológica. “Há uma deturpação por parte de quem defende esse projeto do que é o pensamento crítico, a formação de uma escola crítica em nosso país”, explica Maria Palmira Silva, doutora em Psicologia pela PUC-SP, professora da Uninove e autora do livro “Racismo alimenta dupla crise: Pandemia da Covid-19: reflexões na diáspora negra entre Brasil, EUA e França”.
Opressão de gênero
Quando se trata de ambiente doméstico, todos os estudos apontam a sobrecarga das mulheres. No caso do “ensino doméstico”, as mulheres vão precisar trabalhar o triplo, acentuando ainda mais a divisão sexual do trabalho e inviabilizando, cada vez mais, a possibilidade de inserção no mercado de trabalho, autonomia financeira e controle sobre seus próprios destinos.
No entanto, a opressão de gênero não para nessa perspectiva. Ao prover um ensino limitador, preconceituoso e profundamente elitista, as especialistas apontam que o ensino doméstico também abre espaço para reforçar na criança a ideia de que a mulher é apenas aquela que cuida, que exerce as profissões de menor valor e menos competitivas. “A longo prazo, vamos voltar àquilo que a gente sempre combateu: mulheres nas funções de cuidadoras, precarizadas e com baixa remuneração e homens em funções competitivas. É um retrocesso na mentalidade da nossa sociedade”, aponta Maria Palmira.
Violação de Direitos
A pandemia de Covid-19 trouxe à tona os efeitos negativos do “ensino doméstico” e evidenciou que os pais não dispõem de todos os recursos pedagógicos para garantir o aprendizado dos filhos. Um estudo realizado pela Organização Gallup revelou que o uso do castigo físico em crianças entre 3 e 4 anos é comum para 94% dos entrevistados.
“Diante das exigências da escola, os pais aplicam castigo físico, ameaças, gritos durante a execução das tarefas. Minhas alunas que trabalham nos Saocas [Serviços de Acolhimento Institucional] trazem relatos de aumento no número de violência física, negligência ou de casos de exploração do trabalho de crianças e adolescentes”, explica Palmira.
Também no Brasil a maior parte das crianças que sofrem agressões estão na faixa etária semelhante. Ou seja, não é possível confiar a educação dos filhos para os pais que não dispõe de recursos pedagógicos e já estão assoberbados com outras tarefas domésticas.