A escalada armamentista de Jair Bolsonaro e apoiadores chamou a atenção do decano do jornalismo brasileiro, Janio de Freitas. Em artigo na Folha de S.Paulo deste domingo (30), ele denunciou o “incompreensível descaso com as medidas de Bolsonaro para armar parte da população”. Para Janio, esse imobilismo institucional é “tão ameaçador para o futuro próximo quanto a própria ação armadora de Bolsonaro”.
“As medidas de Bolsonaro para o armamento de civis obedeceram a um plano… São uma denúncia de si mesmas e de suas finalidades criminosas”, afirmou o articulista. “As importações de fuzis e metralhadoras não são suspeitas: são, com toda a certeza, armas para o crime. Contra pessoas, grupos, instituições constitucionais e o regime de liberdades democráticas”, prosseguiu, alertando para o risco de uso do arsenal para “melar” os resultados das eleições deste ano.
Um dia após o artigo, Bolsonaro referiu-se às eleições como “guerra” e se vangloriou de que “hoje, o homem do campo, CAC (Colecionador, Atirador esportivo e Caçador), pode comprar um fuzil”, em evento de pré-partida da Unidade de Processamento de Gás Natural do Gaslub Itaboraí (RJ). “Lógico que diminui invasão no campo”, concluiu seu pensamento tortuoso, chamando de “terrorista” o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Desde 2019, Bolsonaro já publicou 38 normas para facilitar o acesso a armas. Embora muitas estejam judicializadas no Supremo Tribunal Federal (STF), a meta de aumento do acesso da população a armamentos variados foi atingida.
Entre 2019 e 2021, o registro de armas de fogo pela Polícia Federal mais do que triplicou em relação aos três anos anteriores (2016 a 2018), aponta levantamento do Instituto Sou da Paz. Nesses três anos, foi registrada uma média anual de 153 mil armas novas, aumento de 225% em relação ao triênio anterior, quando a média anual foi de 47.141.
Entre janeiro e novembro de 2021, houve 188 mil registros de armas novas, o mais alto dos últimos 13 anos. Destas, 143 mil (76%) sob responsabilidade de cidadãos comuns, que alegam necessidade de “defesa pessoal”. Os números de dezembro de 2021 ainda não foram divulgados, mas o país deve ter fechado o ano com um estoque de mais de 2,2 milhões de armas em arsenais particulares.
O registro de porte de armas pela Polícia Federal também cresceu 50%, comparando-se os três anos de Bolsonaro com os três anos anteriores. Foram emitidos em média 10.627 portes de armas entre 2019 e 2021, contra média de 7.043 entre 2016 e 2018. A diferença pode ser maior, pois os dados disponíveis consideram portes emitidos até 8 de outubro do ano passado.
O Exército – que controla armas compradas por CACs e profissionais das Forças Armadas e de segurança para uso pessoal – contabilizou mais de 260 mil novos registros até novembro de 2021. Somados aos dados da PF, são quase 450 mil novas armas em circulação no Brasil só em 2021, estimulando um mercado crescente. Até novembro, o Exército havia autorizado a abertura de 1.709 lojas de armamento e munição e de clubes de tiro país afora.
Importação bateu recorde
Outro ramo próspero da era Bolsonaro é o de importação de armas de fogo. O volume de negócios cresceu 33% em 2021 no Brasil em relação a 2020, chegando a US$ 51,9 milhões, contra US$ 38,9 milhões no ano anterior.
Esse é o maior valor da série histórica produzida pela Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia (Siscomex), que começa em 1997. O sistema coleta informações de importadores e exportadores sobre os produtos que entram e saem do Brasil.
Levantados pela BBC News Brasil, os dados mostram aumento também da quantidade de armas. Somando todos os grupos levantados pela BBC News Brasil, foram importadas 140.559 armas de fogo em 2021 contra 119.335 no ano anterior, um crescimento superior a 17%.
No ano passado, houve crescimento de 12% no total de revólveres e pistolas importadas, chegando a 119.147 contra 105.912 em 2020. Outra categoria que registrou crescimento foi a de espingardas e carabinas de tiro ao alvo, saindo de 4.125 armas importadas em 2020 para 5.572 em 2021 – alta de 35%.
Entre fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras importadas, o número explodiu 574% em 2021 e subiu para 8.160 itens. Entre 2019 (371) e 2020 (1.211), já tinha havido crescimento de 226% na entrada dessas armas. Entre 2018 e 2019, o aumento foi de 13%.
O avanço dos últimos três anos ocorreu após Bolsonaro assinar, a partir de 2019, uma série de decretos que desclassificaram itens considerados Produtos Controlados pelo Exército (PCEs) e facilitaram a aquisição desse tipo de armamento. Antes, apenas os colecionadores tinham acesso a modelos com mais de 70 anos, ou seja, armas efetivamente antigas. O uso era vedado a caçadores e atiradores.
Agora, colecionadores, que só poderiam ter um fuzil de cada modelo, podem ter até cinco armas de cada modelo. Caçadores, que não poderiam ter fuzil, agora podem ter até 15 unidades. Atiradores, que antes também não poderiam ter fuzis, agora podem ter até 30 armas desse tipo.
Dados do Exército, que mantém um sistema diferente, também apontam aumento no volume de pedidos de importação de armas de fogo entre 2020 e 2021. A corporação autorizou a entrada de 144.992 armas, um crescimento de 111% em relação ao ano anterior (68.521). A maior parte dos pedidos de importação (69,08%) foi feito por empresas. O restante foi feito por órgãos públicos (30,7%) e 0,2% por pessoas físicas.
O Brasil vem registrando crescimento no volume de importação de armas desde 2015, mas os dados mostram que essa tendência se acentuou durante o desgoverno Bolsonaro. Em 2019, as importações de armas de fogo aumentaram 46%, bateram recorde e chegaram a US$ 23,8 milhões. Em 2020, o crescimento foi de 64% levou a um novo recorde: US$ 38,9 milhões.
Arsenal dos CACs já é maior que o das PMs
Ao fazer um levantamento para seu livro Arma de fogo: Gatilho da violência no Brasil, o advogado e gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, descobriu que o número de armas em circulação na categoria CAC no Brasil já é superior ao total de armas da Polícia Militar. Os dados obtidos a partir do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) e do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) até abril de 2021 contabilizavam 648.731 armas nas mãos dos Cacs, contra 583.498 com as Polícias Militares.
Langeani afirma que a facilidade para importação tende a aumentar a quantidade de armas que podem chegar ao crime organizado. “Antigamente, no mercado ilegal, fuzis custavam entre R$ 40 mil e R$ 50 mil. Agora, com as novas regras, esse preço pode chegar a R$ 20 mil. Quando você aumenta a quantidade de armas pesadas que civis podem comprar, você está aumentando a quantidade de armas que pode acabar abastecendo as quadrilhas e isso é ruim para a segurança pública”, raciocina.
Um exemplo disso, diz o advogado, ocorreu no último dia 25, quando a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) apreenderam 26 fuzis, 21 pistolas, três carabinas e munição para fuzil em uma casa na Zona Norte da cidade. O material havia sido adquirido por um traficante de armas que tinha uma licença de CAC. Ele comprava as armas de forma legal e repassaria os produtos a facções do crime organizado.
“Essa apreensão é um exemplo do que a gente tem alertado. Essas mudanças criaram um acesso legal a um número alto de armas e munições de calibre restrito. Agora, traficantes de armas podem receber em casa esses produtos feitos no Brasil ou no exterior com um verniz de legalidade e depois repassar essas armas ao crime organizado”, apontou Langeani.
Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani, professor da FGV e PHD pela Manchester Business School, também destaca que mais de 80% das armas em poder dos criminosos no Brasil são armas que já foram legais algum dia. “Há uma clara ligação entre os mercados legal e ilegal de armas. Essa conexão é real”, acrescenta o pesquisador em segurança pública da International Action Network on Small Arms (Rede de Ação Internacional Sobre Armas Pequenas), Ivan Marques.
“A proliferação dos CACs foi impulsionada pela política de armamento de civis”, afirma a pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Ana Penido.
“Com a anuência das instituições responsáveis pelo monopólio da força do Estado (inclusive a fiscalização de armamentos), os números apontam para a construção de um exército paramilitar”. afirma a pesquisadora Ana Penido.
Ela avalia que, embora não se possa qualificar a disposição política desse contingente, é possível afirmar que os CACs oferecem rede de sociabilidade para pessoas que compartilham uma forma de pensar temas como segurança comunitária e pessoal. “E, consequentemente, algumas crenças políticas altamente militarizadas, com potencial de fogo mais do que suficiente para desestabilizar democracias.”
“Estamos já no ano eleitoral. É preciso identificar e comprovar o destino das armas de uso bélico importadas, em quantidade, por decorrência de medidas programadas e impostas por Bolsonaro, sem resistência institucional, dos meios de comunicação ou dos setores civis influentes”, defende Janio de Freitas. “Do contrário, quem puder, e tiver tempo, saia da frente dessas armas”, finalizou.