O jovem cientista político Mathias Alencastro tem contribuído em sua coluna quinzenal na Folha de S.Paulo, bem como em debate nos meios de esquerda, para atualizar o debate brasileiro em temas emergentes da política internacional européia e africana. Na sexta-feira passada (24/02), o autor escreveu um artigo, no mesmo jornal, com o título provocativo de “Se não se transformar, PT se tornará o MDB da nova esquerda”.
Houve uma incompreensão de Mathias do sentido das palavras da presidenta do partido, Gleisi Hoffmann, de críticas ao assim chamado “Plano B” – a retirada da candidatura de Lula à presidente, primeiro lugar nas pesquisas, em prol de outra postulação. Vale observar que Gleisi apenas expressou a vontade da maioria do partido, como também a voz quase uníssona dos mais importantes movimentos sociais. No entanto, segundo Mathias, “a mensagem [do discurso de Gleisi] é clara: qualquer iniciativa da sociedade civil para discutir o futuro do segundo maior partido do Brasil deve ser invariavelmente interpretada como uma ameaça.”
Valter Pomar, em excelente réplica a Mathias, repôs a verdade. Escreve Valter: “Gleisi simplesmente não disse isso. E Mathias Alencastro mistura, propositalmente ou não, dois assuntos diferentes. Um assunto é a “renovação do partido”, ou seja, a discussão sobre seu programa, sua estratégia, seu funcionamento cotidiano, suas táticas e sua relação com a classe trabalhadora e demais setores da sociedade brasileira. Outro assunto é a proposta segundo a qual o PT deveria lançar e/ou apoiar outro nome, que não Lula, para presidente da República. O discurso de Gleisi dia 22 de fevereiro versou sobre este segundo assunto. Os dois assuntos estão ligados? Claro que sim. Mas estão ligados de uma maneira contrária ao senso comum.”
No desenvolvimento do artigo, Mathias argumenta, estabelecendo paralelos e analogias entre a esquerda brasileira e européia, que os mais recentes desenvolvimentos positivos da esquerda no velho continente, sempre vieram de “fora para dentro” das estruturas partidárias. Um dos exemplos positivos mobilizados é o da renovação promovida por Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista britânico.
Mathias reviu a opinião sobre Corbyn. Mas guardou em segredo não contou a ninguém. Curiosamente, em coluna publicada na Folha de 12/06/2017, sugestivamente intitulado “Jeremy Corbyn e o impasse populista”, escreve ele que “a celebração efusiva do resultado de Corbyn mostra como a esquerda se acostumou com vitórias de Pirro.” Igualmente, Mathias não demonstra maiores simpatias à plataforma da “França Insubmissa” de Jean-Luc Mélenchon.
Em resumo, para Mathias, essas tentativas de renovação da esquerda européia seriam “populistas”.
O que Mathias etiqueta genericamente de “populismo” – pagando pedágio ao mainstream tanto do neoliberalismo como da terceira via -, preferimos chamar de programa radical. Radical no sentido de Marx, de ir à raiz dos problemas.
Assim, embora reconhecendo impasses, problemas e inevitáveis particularidades nacionais, para nós, as experiências eleitorais recentes, de relativo êxito conquanto não vitoriosas, acontecidas nos Estados Unidos(fazemos questão de incluir Bernie Sanders), França (Jean-Luc Mélenchon), e no Reino Unido (Jeremy Corbyn), concentram a seguinte lição: em tempos atuais, a esquerda, quando assume um programa de crítica radical do neoliberalismo e do capitalismo financeiro, polariza, aglutina e cresce; quando, ao contrário, assume um discurso envergonhado e conciliador diante do mercado e das elites, definha organicamente, deixa de polarizar, aglutinar e crescer. Este é o verdadeiro debate programático.
Além disso, ao não polarizar, sucede a tragédia das tragédias: a ausência de uma esquerda de verdade cede espaços ao crescimento da direta neofascista. Não se trata de apenas ganhar eleições, embora isto seja fundamental, mas de a esquerda sair fortalecida e com largo horizonte de futuro.
A gerência do capitalismo se transformou no programa real executado pela maioria da esquerda, rebaixando o horizonte de expectativas. Deixamos de nos diferenciar. Nos tempos de hegemonia do capitalismo financeiro, a margem de manobra da parte dos governos de esquerda é muito menor que no passado. Esta é a primeira premissa do programa radical que precisamos construir.
Excepcionalmente, mais como exceção do que como regra, houve no Brasil por 10 anos, entre 2003 e 2013, uma janela excepcional e situada, do “ganha-ganha” entre capital e trabalho, mediado pelo Estado. Enquanto foi possível, o barco seguiu navegando. Entre outros feitos logramos distribuir renda e incluir os mais pobres. Mas logo sobreveio a crise, cujos primeiros sintomas, tanto políticos como econômicos, se apresentaram com força na campanha de 2014. Contudo, após a suada segunda vitória de Dilma e um segundo turno de mobilização social e discurso radical, o governo escolheu a via do neoliberalismo de Joaquim Levy. A partir da temerária decisão, a história é conhecida.
A janela de oportunidade de 2003/13 não vai se repetir. O passado morreu. Os setores da grande burguesia, e não a esquerda, vale observar, quebrou o pacto democrático de normal revezamento de poder, estabelecido no período da edição da Constituição de 1988. Neste sentido, a situação brasileira é bastante distinta do cenário europeu.
Ao contrário da normalidade institucional européia – lá, por exemplo, o governo Hollande simplesmente se rendeu ao neoliberalismo -, aqui no Brasil, ao invés de rendição houve um traumático golpe de Estado no qual fomos apeados do poder. Fomos derrotados no golpe, mas não enfiamos a cabeça na terra feita avestruzes. Partimos para a resistência ao golpe e neste processo acumulamos força.
Principal resultado de nossa resistência: a grande ameaça de consolidação do golpe é justamente a força popular da candidatura Lula. Hoje, objetivamente, pelo símbolo histórico-popular em que se transformou, Lula é o grande entrave político ao êxito da aplicação das políticas neoliberais – por isso é combatido sem tréguas nem acordos.
No presente momento, a rendição tem nome e senha: “Plano B”. Muita gente ainda não percebeu, mas por trás da retórica do “Plano B” existem duas manobras combinadas: 1) tirar o Lula imediatamente do jogo e; 2) pretender que o PT e a esquerda abram mão do discurso do golpe e da crítica radical às reformas neoliberais de Temer. Pretende-se, assim, a partir da manobra eventualmente vitoriosa, construir uma nova chapa presidencial com nome, perfil e programa que resgate a política de conciliação do período anterior.
Uma vez obstruídos os caminhos da candidatura Lula, não se deve liminarmente descartar a possibilidade que setores mais ilustrados das elites apostem numa espécie de retorno do PT ao jogo institucional, desde que repaginando a velha política de conciliação. Aceitar-se-ia o PT desde que domesticado, sem falar em luta de classes e reformas sociais, mas para fazer uma oposição consentida que legitime o processo. Aí, sim, e não através das analogias de Mathias Alencastro, o PT se transformaria no MDB da “nova esquerda”. Trata-se do melhor o caminho para a rendição, a derrota e a infâmia.A história da esquerda no Brasil constitui, na maioria dos casos, a narrativa das oportunidades perdidas. Não podemos repetir a tragédia como farsa.
É chegada a hora de abrir um novo ciclo, e no ciclo, uma guinada cujo ápice seria a eleição de uma nova Assembleia Constituinte que inscrevesse na Carta Magna a taxação das grandes fortunas e progressividade do sistema tributário, a regulação dos meios de comunicação, a reforma urbana e agrária, enfim, as grandes reivindicações populares, entre outras medidas. De surgir uma esquerda com mais nitidez programática. Que seja social e de massas, mas pense mais em termos de economia política, de Estado e de estratégia.
A próxima eleição presidencial brasileira, a realizar-se já em outubro, em razão de tudo que aconteceu de 2014 para cá – o não reconhecimento do resultado eleitoral pela oposição, o golpe de Estado, as reformas neoliberais radicais, a condenação do Lula, a intervenção militar no Rio de Janeiro etc. – serão as mais duras de nossa história. À diferença dos exemplos europeus e americanos, aqui mobilizados, estamos no páreo. O Brasil se encontra em uma encruzilhada histórica: a grande questão para a esquerda, nos próximos embates, não é apenas institucionalmente acumular forças, elegendo mais e melhores bancadas parlamentares e governadores. É preciso acumular forças, mas é urgente haver um salto de qualidade. Por tudo isso, definitivamente, arremedos de terceira via não servem para o Brasil.
Lindbergh Farias – Senador (PT-RJ)
Jaldes Menezes – Professor Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba