Os métodos aplicados em hospitais militares em apoio à campanha bolsonarista pelo “kit covid” durante a pandemia começam a vir à tona. O Exército é acusado pelo menos duas vezes de interferência direta em decisões de médicos militares na prescrição de remédios. Segundo as denúncias, as medidas foram tomadas em hospitais do Exército em Natal, João Pessoa e Recife, além do Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília.
A primeira denúncia foi feita ao Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco. Conforme relatou a coluna de Lauro Jardim neste domingo (10), um dos profissionais afirmou que havia “coerção dos médicos militares pelo comando da 7ª Região Militar (RM) para prescrição de tratamento precoce para Covid e reavaliação de atendimento para indicação forçada de medicação”.
O comandante teria ordenado que os pacientes de covid nas unidades das capitais nordestinas passassem por um “segundo atendimento”, com a possibilidade de “reconsideração de ato”, caso os médicos não tivessem receitado os medicamentos do “kit covid”. Um Oficial de Supervisão Administrativa, com patente de capitão ou superior, e não obrigatoriamente da área de saúde, faria esse procedimento.
Na prática, disse o denunciante, os médicos seriam “praticamente obrigados a prescrever com um capitão vigiando”. Em resposta a questionamentos do MPF, os hospitais militares responderam de forma coordenada, informando que “respeitavam a autonomia médica”. Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte estão sob jurisdição da 7ª RM.
O MPF arquivou a denúncia, como ocorreu no ano passado, com a apuração do caso Prevent Senior pelo MP de São Paulo. Em dossiê entregue à CPI da Covid no Senado, médicos e ex-médicos denunciaram que a operadora de saúde fez pacientes de cobaia em estudos sobre a hidroxicloroquina, fraudou dados sobre mortes e pressionou médicos a receitarem medicamentos sem eficácia comprovada.
Prescrição em massa no HFA
Em Brasília, o Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) abriu na última semana um processo para investigar as prescrições em série do “kit covid” no Hospital das Forças Armadas (HFA). Médicos da unidade afirmam que do final de 2020 até, pelo menos, julho de 2021, foram produzidas milhares de receitas pré-assinadas para o uso de hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. A apuração corre em sigilo.
Prática proibida pelo Código de Ética da Medicina, os médicos do pronto-socorro do HFA – contrários ao uso dos remédios – teriam sido orientados a entregar receitas pré-assinadas e carimbadas por outros profissionais para prescrever os medicamentos a pacientes que faziam questão de recebê-los. As receitas já estavam prontas antes de os pacientes serem consultados.
Sem revelar a identidade, um médico do HFA disse que havia uma “pressão velada” para receitar o kit-Covid. “O discurso era sempre esse, que eles respeitavam a autonomia médica, mas que se a gente não prescrevesse, eles iam mexer na escala. Era obrigatório ter alguém que prescrevesse no plantão. Sempre fazendo muita pressão em cima”, afirmou à TV Globo.
Em nota à TV Globo, o HFA negou as acusações. “Os médicos sempre tiveram autonomia e a emissão das receitas só ocorria depois de uma consulta detalhada, com a realização dos exames médicos julgados pertinentes”, garantiu o hospital. A direção da unidade também disse que não se manifesta sobre as atividades do Conselho, mas que “está pronta para contribuir fornecendo as informações necessárias”.
Um dos médicos denunciantes refutou a resposta do HFA. “Os medicamentos eram distribuídos lá. Não precisava comprar. Os pacientes, inclusive, faziam superlotação no pronto-socorro, que não tinha estrutura para receber tantos casos positivos, porque os medicamentos eram dados”, revelou. “A maioria não queria nem passar por consulta médica. Só queriam tomar o kit. Porque o que era divulgado era que o kit salvava vidas.”
Os médicos relataram ainda que foram orientados sobre o uso das receitas pré-assinadas no fim do ano passado, pelo chefe do pronto-socorro, major Milson Faria. Em troca de mensagens com a equipe, ele escreveu: “Resolvemos deixar uma pasta com estrutura de receita já carimbada e assinada, e junto uma pasta com termo de consentimento”. O oficial não se manifestou.
Para o presidente da Associação Médica Brasileira, César Eduardo Fernandes, a prescrição em massa de medicamentos é uma infração gravíssima de conduta. “Se um tratamento é eficaz, ele tem que diminuir o número de casos graves, número de mortes, número de internações em UTI. Está demonstrado claramente que essas medicações não conseguem trazer esses efeitos clínicos. Mais ainda, não são isentas de efeitos colaterais”, acusou.