Fátima: não há ainda consenso sobre benefícios da mudançaConvocada pela bancada feminina no Senado, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) realizou audiência pública nesta terça-feira (21) para discutir o polêmico projeto que pretende realizar uma série de alterações na Lei Maria da penha. O Brasil tem uma das legislações de combate à violência doméstica mais avançadas do mundo, o que não impediu que o tsunami conservador da Câmara dos Deputados, onde o projeto nasceu, tente modificá-lo. O ponto mais questionado da proposta, que já foi aprovado pelos deputados e agora vai ser examinado pelos senadores, tendo o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-S) como relator, é o que pretende transformar a medida protetiva de urgência, atualmente uma medida judicial, em ato administrativo a ser definido pela autoridade policial que atender a vítima.
A senadora Fátima Bezerra (PT-RN), uma das proponentes do debate, pediu responsabilidade e cautela ao se pretender alterar um instrumento “que se inscreve entre as medidas civilizatórias mais relevantes” conquistadas pela sociedade brasileira. “Antes de se mexer na Lei Maria da Penha, precisamos fazer uma profunda reflexão. Não há consenso em torno da proposta e é isso que devemos buscar”, afirmou. As senadoras Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Ângela Portela (PT-RR) também foram signatárias do pedido de audiência e acompanharam o debate.
Em um primeiro olhar, continua a senadora, a ideia de transferir para a autoridade policial a prerrogativa de deferir a medida protetiva solicitada pela vítima de violência doméstica pode parecer uma providência benéfica, especialmente diante da recorrente morosidade da Justiça em avaliar esses pedidos. Foi citado o caso de uma mulher que, após agressões sucessivas do marido, procurou a delegacia, recebeu a requisição de medida protetiva e acabou assassinada, já que o juiz encarregado de apreciar o caso levou 20 dias para proferir sua decisão.
Flávia, de São Paulo, e Tatiana, de Goiás, duas sobreviventes da violência doméstica, emocionaram os participantes da audiência relatando seus casos —marcados pela morosidade da justiça.
A maioria das senadoras proponentes da audiência, porém, destaca que a aparente agilidade que poderia derivar dessa mudança é ilusória. Se a Justiça muitas vezes demora em agir, a polícia igualmente não está devidamente aparelhada e preparada para essa missão. No país inteiro, existem apenas 400 delegacias especializadas da mulher e, na maioria das demais delegacias, o que predomina é o despreparo para acolher a mulher vítima de violência de gênero. Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) lembrou o exemplo da adolescente vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro. “Ela foi a uma delegacia comum e foi novamente vitimizada pelo atendimento policial que recebeu”, lembrou.
A medida protetiva de urgência, prevista na Lei Maria da Penha, é uma ordem judicial destinada a proteger a mulher em situação de violência doméstica em caso de risco iminente à sua integridade psicológica ou física. Elas consistem, por exemplo, na fixação de distância mínima do agressor em relação à vítima — o que, muitas vezes, implica da vedação de acesso do agressor a seu próprio domicílio, caso more com a vítima. Também podem ser vedados os contatos com familiares da pessoa agredida (inclusive filhos do casal) e testemunhas da agressão.
O promotor de justiça Thiago Pierobom, coordenador da área de violência doméstica no Ministério Público do Distrito Federal, destaca que uma medida protetiva interfere em uma série de direitos fundamentais do acusado de agressão e, portanto, precisa da decisão de um magistrado para se consumar.
“A proposta corrompe a Lei Maria da Penha, desequilibra o sistema jurídico e reforça o Estado penal. Não queremos uma superpolícia; queremos uma polícia que cumpra seus deveres constitucionais”, criticou Carmen Hein Campos, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Carmem participou da audiência também na condição de representante do consórcio de entidades da sociedade civil que, ao longo de dois anos, debateu e formulou o anteprojeto da Lei Maria da Penha.
A proposta também é combatida por integrantes do Ministério Público e do Judiciário, mas conta com o apoio das associações de delegados de polícia, que passariam a incorporar nova atribuição caso o projeto fosse aprovado.
A atual secretária de Políticas para as Mulheres do Ministério da Justiça, Fátima Pelaes, também pediu cautela na análise da proposta e defendeu que o Legislativo adie a votação da matéria.
Cyntia Campos