“Fiz o que pude para que a Constituição não fosse rasgada”, afirma Cardozo

“Fiz o que pude para que a Constituição não fosse rasgada”, afirma Cardozo

Cardozo: há golpe com direito de defesa, justamente para simular a sua legitimidade. E é o que ocorre nesse processoO Advogado-Geral da União, José Eduardo Cardozo, também esteve presente na madrugada desta quinta-feira (12) na sessão do Senado que votou pela admissibilidade do processo de impeachment contra a presidenta Dilma. Sua participação, na condição de defesa, mais uma vez mostrou que não houve crime de responsabilidade na edição de decretos legislativos. 

“Não houve pedaladas, ou seja, se pune ou se quer punir uma presidente da República legitimamente eleita por algo que ela fez, que outros governos fizeram, que era tido como legítimo pelo Tribunal e que, depois então, retroativamente, se quer penalizá-la. Punição retroativa, só na Idade Média acontecia isso.” 

Leia a íntegra da defesa do Advogado-Geral da União, José Eduardo Martins Cardozo 

Senhor presidente, senhor relator.

Senhores senadores, senhoras senadoras. 

Em nome da senhora presidente da República, a manifestação final da defesa nesta etapa do processo. 

De imediato, gostaria de afirmar que, por opção do povo brasileiro, votada nas urnas, a Constituição adotou a forma presidencialista de governo. No presidencialismo, não se destituem governos por uma vontade política. No presidencialismo, exigem-se pressupostos jurídicos que permitam que um governo legitimamente eleito tenha o seu mandato extinto. 

Esses pressupostos jurídicos são chamados, no art. 85 da Constituição Federal, de crimes de responsabilidade. Somente quando os crimes de responsabilidade se configuram, em todas as suas características, é que se pode afirmar o juízo político acerca da conveniência ou da inconveniência da permanência de um chefe do Executivo e de chefe de governo no exercício de uma situação de rompimento de mandato. 

Quais são os pressupostos necessários para que exista uma interrupção de mandato, no nosso País, de chefe do Executivo? 

O art. 85 é claríssimo: existe um ato atentatório à Constituição, um ato, portanto, ilegal; um ato, portanto, gravíssimo; um ato, portanto, doloso, caracterizado pela má-fé do presidente da República. 

A defesa da senhora presidenta Dilma Rousseff afirma: não existem crimes de responsabilidade caracterizados neste processo. Com a devida vênia, a simples leitura do relatório do querido amigo e professor Anastasia mostra que os fatos foram encaixados não para se chegar a um resultado legítimo, mas os fatos foram encaixados para se justificar uma vontade política de que a senhora presidente da República fosse afastada, mesmo não tendo praticado qualquer ilícito. 

Quais são as duas acusações, senhores senadores, senhoras senadoras, que são voltadas contra a senhora presidente da República? 

A primeira acusação é aquela da prática de decretos de abertura de crédito suplementar. Afirma-se que não havia base legal para créditos dessa natureza serem abertos. 

De que tratam esses decretos? Tratam de verbas para a Polícia Federal; tratam de verbas para o Poder Judiciário; tratam de verbas para o MEC, dentre outros. 

Não foram decretos que visavam passar verbas para um uso indevido. Não! Era um ato normal de gestão da Administração, mas a acusação, portanto, qual é? Que não havia base legal. Mas há. 

O art. 4º da Lei Orçamentária de 2015 é expresso: “Esses decretos podem ser baixados, desde que exista compatibilidade com as metas fiscais.” E havia, havia essa compatibilidade, sim, porque decretos não implicam gastos quando se referem à abertura de créditos suplementares; decretos apenas mexem no Orçamento. “Ah, mas mexer no Orçamento não permite mais gastos?”. Não, se houver um decreto de contingenciamento. 

E assim foi feito. Justamente para que houvesse a compatibilidade prevista no art. 4º da Lei Orçamentária. Mexeu-se no Orçamento, mas se contingenciou apenas para permitir uma boa alocação das verbas. Eu desafio qualquer um dos senhores ou das senhoras a ler o relatório do senador Anastasia e ver onde está demonstrada a relação de causa e efeito entre decreto e rompimento de meta fiscal. Não há. 

Porque a meta fiscal poderia não ter sido atingida? Por quê? Porque caiu a receita. E não porque os decretos foram baixados. Isso está provado pela defesa. Por relatórios de auditorias. Por relatórios independentes. Foi a queda da receita que sinalizou que a meta não poderia ser atendida. Nada a ver com os decretos, porque aquilo que foi remanejado pelo decreto se seguiu de um decreto de remanejamento. 

Não houve, portanto, ilícito. E, mesmo que a meta fiscal tivesse sido ferida, portanto não teria sido pelos decretos. Mas a meta fiscal não foi ferida. O Congresso Nacional, com a maioria dos votos dos senhores, alterou a meta fiscal, como todos os governos fazem. Alterou a meta fiscal. E no momento em que a Lei de Responsabilidade Fiscal dizia: “Esta meta terá agora que ser verificada”, a meta havia sido alterada por decisão de vossas excelências.

“Ah, mas a lei obriga relatórios, a lei obriga situações de análise periódica, e na análise periódica se mostrava que a meta não estava sendo cumprida”. 

Senhores, meta se relaciona com prazo. Meta não se faz dia a dia. Meta se faz daquilo que a lei estabelece. E, no momento em que a lei tinha que ser analisada nas metas, as metas foram cumpridas. As metas foram cumpridas. 

Será que, se eu me programo a construir uma casa pelo prazo de um ano, se eu não colocar um tijolo por dia, eu firo a meta? Não. É ao final do período que eu estabeleci para construir a casa que eu vou verificar se a casa foi construída ou não. 

Isso é de uma obviedade cristalina. Isso é de uma evidência solar. 

Mas aí pergunto: onde está o dolo da senhora Presidente da República? Onde está o dolo? Onde está a má-fé? Todos os governos anteriores faziam o mesmo. O governo Fernando Henrique Cardoso baixou 101 decretos, e o Tribunal de Contas da União, apesar de o governo Fernando Henrique ter alterado as metas, disse: “Vamos melhorar o planejamento”. Isto! 

Contas não foram rejeitadas. Os decretos eram aceitos. Onde está a má-fé da senhora presidente da República? Se todos esses decretos foram baseados em pareceres, inclusive da AGU, que diziam que eram legais? Onde está a má-fé da presidente, se esses pedidos por esses decretos foram feitos por órgãos, inclusive do Poder Judiciário? 

O Conselho Nacional de Justiça pediu o decreto. Fraudou a lei o Conselho Nacional de Justiça? Fraudaram a lei os Ministros do Supremo Tribunal Federal que integram aquele órgão e do STJ? Houve fraude à lei, de todos? Bem. Puniu-se a presidente da República por uma fraude que não existe.

 

E as chamadas pedaladas fiscais? No que consistem? Num atraso de pagamento ao Banco do Brasil. E aí se vem: “Não, não. Na verdade, não foi um simples atraso. Na verdade, foi uma operação de crédito. Porque quando alguém atrasa um pagamento implica empréstimo”. Atrasar pagamento é empréstimo? De onde se tira isso? Não é da Lei de Responsabilidade Fiscal que se alega teria sido vedada, ou teria vedado esse tipo de operação. Não. Porque lá diz que operação de crédito é proibido. 

E aí, para se justificar a situação, se diz: “Não, por favor, não. É que o conceito de operação de crédito da Lei de Responsabilidade Fiscal é diferente do conceito de operação de crédito das outras leis”. E por que é que a lei, então, não disse isso? E por que, então, não se dizia isso antes? 

Notem, senhores, tanto no caso dos decretos, como no caso das pedaladas, nos dois casos – nos dois casos –, o Tribunal de Contas da União admitia aquilo. Mudou de opinião. E, no momento em que ele muda de opinião, o governo seguiu a lei ditada na orientação do tribunal. 

Não foram praticados atos depois que o Tribunal de Contas mudou de opinião. Não foram editados novos decretos. Não houve pedaladas. Ou seja, se pune ou se quer punir uma presidente da República legitimamente eleita por algo que ela fez, que outros governos fizeram, que era tido como legítimo pelo Tribunal e que, depois então, retroativamente, se quer penalizá-la. 

Punição retroativa, só na Idade Média acontecia isso. Muda-se a lei e pune-se o passado antes da mudança da lei. Como é possível isso, senhores parlamentares? Só uma explicação para isso é dada. Se quer construir teses, se quer amoldar conceitos, se quer construir uma fantasia retórica para afastar uma presidente da República legitimamente eleita por mera vontade política, por ela não ter a maioria do parlamento, por estarmos em uma crise. 

O que estamos construindo no nosso Brasil? Quem terá condições de governar daqui para frente, se pretextos podem ser utilizar para afastar um presidente da República legitimamente eleito? Ouvi, senador Lindbergh, outro dia de uma autoridade internacional, me disse: “a se consumar o impeachment com essas acusações, o Brasil terá se transformado na maior República das Bananas do planeta”. 

Senhores, há que se olhar a história e há que se verificar como começou esse processo de impeachment. Esse processo de impeachment começa com um pecado original, que ninguém enfrenta no mérito. Ele começa com uma decisão de Eduardo Cunha, que ameaçou o governo para obter votos para a sua liberação no Conselho de Ética. Isso foi arguido pela defesa na Câmara, foi arguido pela defesa no Senado, foi arguido no Judiciário, e ninguém diz o contrário. Ninguém disse que Eduardo Cunha não ameaçou e não abriu com chantagem esse processo. Ninguém diz. 

Inventam-se, criam-se, defendem-se teses para não examinar o problema. Ah, houve uma posição da jurisprudência, que não permite analisar isso. Ah, é uma situação que efetivamente não deve ser analisada nesse processo. Ah, é uma questão que não pode ser analisada em mandado de segurança. Mas ninguém nega, ninguém nega que foi uma ameaça e uma chantagem! Nem o próprio autor da denúncia, Miguel Reale, que disse: “é uma chantagem explícita”. Ninguém nega que há desvio de poder! Ninguém nega! 

E por que não nega? Porque todos sabem que é verdade, que esse processo começou com um pecado original, que começou com uma vingança. Se Eduardo Cunha não fosse o presidente lá, jamais ele teria sido iniciado. Todos os senhores sabem disso. Jamais estaria esse processo aqui e eu fazendo esta defesa agora, se Eduardo Cunha, com seu o desvio de poder, com a sua chantagem explícita, com o seu agir degenerado, não tivesse efetivamente colocado esse processo para mandar. 

Nós sabemos disso. O Brasil sabe disso. O mundo sabe disso. E ninguém, ninguém responde a isso! Não há resposta. A resposta seria a nulidade desse processo. A resposta seria a absolvição da senhora presidente da República. A resposta seria o reconhecimento óbvio que nós vivemos em um estado de direito e que um presidente legislativo não pode ameaçar um presidente da República, chantageá-lo e esse presidente ser afastado. Não pode! 

Mas há uma complacência, há uma complacência em relação a isso. E por que digo que há essa complacência? 

Porque isso não é manobra, isso não é artimanha. 

Desvio de poder? Ah, ele fez lá, mas o processo tinha que andar. Mas quando a defesa usa argumentos normais de qualquer defesa, quando pede a anulação do processo: ah, aí não. Não pode parar. 

A defesa pedir que uma petição que estava parada há mais de 20 dias enquanto o processo andava fosse examinada pelo presidente da Câmara: ah, isso é inominável. Isso é inaceitável. O processo tem que andar.

Tem que andar, mas ninguém reconhece o desvio de poder. Por que a defesa não pode e o vício de origem pode? Por quê? Porque se quer afastar a presidente politicamente. Porque se quer uma decisão política. Aí que se teme a palavra golpe. 

A palavra golpe, quando eu a usei, fui recriminado por Parlamentares. “O senhor não pode usar a palavra golpe.” Não posso? Por que não posso? Não vivemos mais na ditadura. Se eu tenho a afirmação de que a Constituição está sendo desrespeitada, se eu tenho a afirmação de que existe uma violação e que a melhor forma de traduzir essa realidade é uma expressão de todos conhecida: é golpe, porque eu não posso usar? 

Quanto mais uma palavra se aproxima da realidade que se quer esconder, maior o incômodo que o seu uso traz. E é por isso que dizem: “A tese do golpe é esdrúxula.” Esdrúxula, por quê? “Ah, porque todo o procedimento está sendo seguido de acordo com o Supremo.” Procedimento? Não há procedimento sem substância. Se não há crime de responsabilidade, façam o processo com um procedimento mais perfeito do mundo. Sigam todos os prazos, as formalidades. Um processo existe para garantir a substância. Processo na sua forma, sem substância, não serve para nada. 

E aí dirá o relatório do senador Anastasia: “Ah, onde já se viu golpe com direito de defesa?” Eu já vi. Já vi muitas injustiças na história, muitas praticadas com direito de defesa. O Sacco e Vanzetti não foram punidos com direito de defesa e com respeito aos ritos processuais dos Estados Unidos da América. Acusados injustamente, apenas por serem idealistas. Foram condenados.

(Soa a campainha.) 

O SR. JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZO – E os processos de Moscou? Seguiram todos os ritos. No entanto, foi consumado um verdadeiro crime contra a humanidade. Há golpe com direito de defesa, justamente para simular a sua legitimidade. E é o que ocorre nesse processo. Por isso, senhor Presidente, para concluir, afirmo: está-se neste momento condenando uma mulher honesta e inocente. Está-se neste momento utilizando um pretexto jurídico para acusar uma presidente da República legitimamente eleita de atos que todos os governos anteriores praticaram. Está-se cometendo uma injustiça histórica. Está-se condenando um inocente. 

E eu agradeço, senhor presidente, a presidente Dilma Rousseff por ter me dado a oportunidade de fazer essa defesa. 

Agradeço porque a história escreverá o que aqui aconteceu. E, no futuro, quando meus netos me perguntarem: “Avô, de que lado você estava?”

(Interrupção do som.) 

O SR. JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZO – Eu direi: eu fiz o possível para defender a democracia, a Constituição, que tantos deram sua vida, foram torturados, inclusive a senhora presidente da República, para conquistar.

Não há crime de responsabilidade praticado pela senhora presidente da República. O impeachment não se justifica. Se consumado, haverá um rompimento institucional. Se consumado, haverá, com a devida vênia, um golpe que manchará a nossa história. 

E, amanhã ou depois, seguramente, os que estiverem do lado certo terão a cabeça erguida e dirão, como eu pretendo dizer: Fiz o que pude pelo meu País, fiz o que pude para que a Constituição não fosse rasgada.

 

Quem não o fez, responderá pelos seus atos. (Palmas.)

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