“Barriga” de jornal espanhol é similar ao “Brasil que não dá certo” noticiado pela mídia nacional |
Chávez não era Chávez. A foto exibida no El País, jornal conservador espanhol, tinha sido retirada de um vídeo médico de 2008, que mostrava um anônimo homem em coma.
Pesquisa perfunctória teria revelado o erro grotesco e primário. No entanto, o El País, uma espécie de sucursal ibérica do antichavismo, resolveu arriscar para ver se “colava”. Não colou. Um internauta percebeu logo o erro e o jornal teve de retirar a foto e pedir desculpas. Tirou a foto e colocou em si mesmo uma grande e vergonhosa “barriga”.
Entretanto, esse episódio, não é, na realidade, um fato isolado, um simples erro ocasional. Ao contrário, ele é emblemático de um tipo de jornalismo que se tornou bastante comum, especialmente na América do Sul.
Com efeito, na Venezuela, na Argentina, no Equador, no Brasil e em outros países do subcontinente pratica-se, com inquietante desenvoltura, um tipo de jornalismo que costuma distorcer ou falsear a realidade.
Os retratos que são pintados diuturnamente pela mídia tradicional sobre a situação atual desses países mostram um quadro de caos, desagregação social e política e falta de rumo que não encontra correspondência com a realidade objetiva. Parecem “fotos” grosseiramente retocadas por um photoshop concebido para enfear, ou mesmo simples falsificações, como a imagem do suposto Chávez hospitalizado.
No Brasil, por exemplo, há uma década que boa parte da nossa mídia tradicional e oligopolizada divulga as “fotos” e os “retratos” das supostas mazelas dos governos do PT, apresentados, quase que invariavelmente, como absolutamente incompetentes, irremediavelmente corruptos, solertemente antidemocráticos e francamente desastrosos. Pelo o que se divulga em boa parte dessa mídia, o País vive um processo acelerado de decadência desde 2003, quando o governo liderado pelo PT substituiu o “competente”, “limpo” e “democrático” governo de tintas paleoliberais, que havia colocado a nação no rumo “correto” da “modernidade”.
Bem, seria fastidioso enumerar aqui os claros êxitos dos recentes governos brasileiros. Basta fazer análise objetiva dos principais indicadores socioeconômicos para se chegar à inevitável conclusão de que o Brasil, nos últimos dez anos, mudou substancialmente para melhor. Estudo mundial do Boston Consulting Goup, divulgado há poucos meses e solenemente ignorado, coloca o Brasil como o país que mais se destacou na qualidade recente de seu desenvolvimento.
Assim, se alguém quiser entender o que aconteceu no Brasil na última década, não entrará respostas fidedignas na imprensa conservadora. Terá de recorrer a blogs e sites alternativos e a fontes estrangeiras, ou fazer suas próprias pesquisas.
A imagem do Brasil recente construída por parte expressiva da grande mídia tradicional está tão longe da realidade quanto a foto do homem hospitalizado dista do autêntico Chávez. Na tentativa incansável de “furar” os governos progressistas recentes, produz-se uma pletora de “barrigas”, numa espécie de vale-tudo midiático. Trata-se, portanto, de uma mídia-barriga, que fábrica notícias distorcidas, enviesadas, exageradas e até mesmo falsas, de forma sistemática. Uma mídia que convive melhor com figuras do submundo do que com a verdade.
Esse distanciamento da realidade, que beira a esquizofrenia, é muito preocupante. Porém, não é o único. Há também o claro descolamento entre a opinião publicada e a opinião pública. A primeira dedica ódio profundo ao PT e seus governos. Já a segunda consagra Lula e Dilma com recordes de popularidade. Por isso, a mídia tradicional passou, nos últimos anos, a questionar a legitimidade do voto popular. Com a candura que lhe é peculiar, resuscitou a “tese Pelé”, construída na ditadura, segundo a qual o “povo não sabe votar”. Aqueles que votam com a situação o fazem por que são manipulados e desinformados, escravos do Bolsa Família que não têm o hábito de ler Veja e outros modernos bastões do Iluminismo. É um voto que, no fundo, segundo essa concepção, não conta, ou não deveria contar.
Isso nos leva ao terceiro e mais preocupante distanciamento ou descolamento. O distanciamento entre parte da mídia conservadora e a democracia. Em tempos recentes, segmentos da nossa mídia tradicional, honrando uma notável tradição, não se acanharam em aplaudir e defender golpes militares ou “brancos” contra governos progressistas da América Latina, como aconteceu na Venezuela, em Honduras e no Paraguai. Autoridades eleitas e reeleitas, em pleitos livres e lisos, são tratadas caricatamente como “ditadores”, “caudilhos” e “populistas”, gentalha que ameaça a “democracia”. Provavelmente uma “democracia” sem povo e sem voto, que assegura a independência das instituições, desde que elas sejam conservadoras, e a alternância de poder, desde que entre forças políticas da direita, como no pacto político de Punto Fijo, que dominava, com o aplauso da mídia, a Venezuela pré-Chávez.
Obviamente, nada disso é novidade. A grande mídia do Brasil e de outros países do subcontinente sempre foi muito conservadora. No passado, apoiou ditaduras e esmerou-se na crítica a partidos de esquerda e a movimentos sindicais e sociais a eles associados.
A novidade está em que parte dos países da América do Sul é governada hoje por forças políticas que romperam, até certo ponto, em maior ou menor grau, com a agenda neoliberal que levou os partidos de direita e centro-direita da região à ruína política. Surgiram ou chegaram ao poder novas forças políticas. De repente, essa mídia, acostumada com o oligopólio político de uma pequena elite, secundada pelos setores conservadores da classe média, viu seu poder de influência decrescer consideravelmente. Nessa nova conjuntura, revela a sua verdadeira e feroz face: a de um partido de oposição que não mede esforços para recuperar a sua antiga hegemonia e que não tem pudor em atropelar a verdade e as normas básicas do bom jornalismo, colocando em risco a democracia que diz tanto defender.
Entretanto, essa mídia ainda detém firme monopólio da produção e difusão da informação. A internet, por certo, cria circuitos alternativos de debate democrático. Porém, é ilusão pensar que ela, por si só, é capaz de quebrar o monopólio da informação. Na realidade, esse monopólio é também reproduzido no mundo on-line. A informação destoante é francamente minoritária e escassa.
O Brasil precisa de uma mídia mais aberta, profissional, democrática e, sobretudo, plural, como recomenda, aliás, o relatório intitulado “Uma mídia livre e pluralista para sustentar a democracia europeia”, elaborado recentemente, no âmbito da União Europeia. E seu governo precisa, sim, de críticas consistentes e fundamentadas, e não da atual cachoeira de panfletos histéricos, denúncias vazias e textos mal escritos.
Isso demandaria, obviamente, que se iniciasse um debate amplo, franco e livre sobre a extrema concentração dos meios de informação no país. Mas esse é um tema tabu, interditado pela mídia conservadora, que alega que tal debate representa ameaça à liberdade de expressão e à democracia.
Uma alegação tão falsa quanto a foto do Chávez no El País.