Após a primeira versão do programa Future-se ser rejeitada ou enfaticamente criticada pela maioria das instituições federais de ensino e o Ministério Público Federal destacar que a consulta pública realizada pelo Ministério da Educação desrespeitou a legislação que regulamenta esse tipo de consulta, o MEC apresentou à imprensa uma nova versão do programa, comprometendo-se a submetê-la à consulta pública, desta feita em consonância com a legislação pertinente, antes de encaminhá-la ao Congresso Nacional.
Antes de adentrar na análise da nova versão, faz-se importante destacar que a mesma ainda não está disponível no portal do Ministério da Educação (consulta: 06h, 30/10/2019), de modo que dificilmente o MEC será capaz de cumprir o cronograma divulgado, que prevê o encaminhamento do projeto de lei ao Congresso Nacional até o dia 08 de novembro.
No que diz respeito ao mérito da nova proposta, deve-se reconhecer o hercúleo esforço empreendido pelo Ministério da Educação na tentativa de maquiar a versão original, de modo a denotar apreço pelo art. 207 da Constituição Federal, que consagra a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades; e de modo a dissimular o descompromisso do governo Bolsonaro com o financiamento público das universidades e institutos federais de educação.
Abaixo da maquiagem, no entanto, emerge a essência, e a essência da versão original resta preservada na versão ora em debate. Sob o pretexto de fortalecer a autonomia financeira das instituições federais de ensino, o Ministério da Educação busca implementar uma reforma empresarial da educação, que agride a autonomia das universidades e dos institutos federais de educação, mantém ameaçada a manutenção das instituições de ensino, condiciona a liberação de recursos ao cumprimento de metas estabelecidas pelo MEC, interdita o processo de democratização do acesso ao ensino superior público e abre um horizonte de incertezas para a produção científica e tecnológica em nosso país.
O que merece destaque na nova versão do Future-se?
- Os temos “gestão” e “governança” foram eliminados dos eixos estruturantes do programa, uma vez que explicitavam a intenção do MEC de fragilizar a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades.
- Os “contratos de gestão”, que deveriam ser celebrados entre União, instituições federais de ensino e organizações sociais, passam a ser caracterizados como “contratos de desempenho”, e devem ser celebrados entre União e instituições federais de ensino.
- Estabelece que o MEC, conjuntamente com a universidade ou o instituto federal, fixará os indicadores para mensuração do desempenho relacionados aos eixos do programa, considerando as peculiaridades de cada instituição, e contraditoriamente verbaliza que os indicadores de desempenho serão estabelecidos por ato do Ministério da Educação.
- Caso a universidade ou instituto federal atinja os indicadores de desempenho estabelecidos pelo MEC, prevê como contrapartida a concessão de benefícios especiais, caracterizados como sendo a garantia de recebimento de receitas provenientes do Fundo Soberano do Conhecimento e do Fundo Patrimonial do Future-se, que devem ser destinadas às atividades de empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação e internacionalização.
- Para atingirem os resultados em cada eixo do programa, as universidades e os institutos federais poderão celebrar contratos e convênios diretamente com fundações de apoio e/ou contratos de gestão com organizações sociais.
- A participação das fundações de apoio está condicionada a alterações no arcabouço normativo que disciplina o seu relacionamento com as instituições federais de ensino, e não estão explícitas na minuta do projeto de lei quais alterações normativas serão requeridas.
- Verbaliza que os Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) das Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) poderão ser qualificados como organizações sociais.
- Fomenta a constituição de sociedades de propósito específico (SPEs) no âmbito de uma ou mais instituições federais de ensino, por pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, nacionais ou estrangeiras, podendo assumir a forma de sociedade limitada ou anônima; e assegura à universidade ou ao instituto federal percentual do lucro auferido pela SPE, caso tenha como sócio agente público vinculado às referidas instituições.
- Estabelece que a contratação de empresas juniores pela administração direta, autárquica e fundacional para a aquisição de produto, serviço e processo dispensa a realização de licitação, na forma estabelecida em regulamento.
- Autoriza o MEC a constituir o Fundo Patrimonial do Future-se, nos moldes da Lei nº 13.800, de 4 de janeiro de 2019, a ser gerido por instituição privada sem fins lucrativos, constituída sob a forma de associação e escolhida por meio de procedimento de seleção simplificado, dispensada a realização de licitação.
- Prevê como receitas do Fundo Patrimonial do Future-se: doações financeiras e de bens móveis e imóveis e o patrocínio de pessoas físicas, de pessoas jurídicas, nacionais ou estrangeiras, de direito privado ou público, inclusive da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, de Estados Estrangeiros e de organismos internacionais e organismos multilaterais; os ganhos de capital e os rendimentos oriundos dos investimentos realizados com seus ativos; os recursos derivados de locação, empréstimo ou alienação de bens e direitos ou de publicações, material técnico, dados e informações; os recursos destinados por testamento, nos termos do Código Civil; as contribuições associativas; as demais receitas patrimoniais e financeiras; os recursos provenientes de fundos patrimoniais; as receitas decorrentes de arrecadação própria das universidades e dos institutos federais; doações financeiras decorrentes da rentabilidade das cotas do MEC no Fundo Soberano do Conhecimento; e rendas provenientes de outras fontes.
- Ressalva que as receitas decorrentes de arrecadação própria das universidades e institutos federais sejam alocadas em contas separadas, devendo os rendimentos serem utilizados somente em projetos e programas da respectiva instituição, por meio de organização executora.
- Autoriza a União a participar, como cotista, de fundo de investimento específico, multimercado, a ser denominado Fundo Soberano do Conhecimento (FSC), que poderá ser composto por diferentes classes de ativos, tais como ações, renda fixa, câmbio e demais ativos financeiros e imobiliários, inclusive públicos, a ser constituído, estruturado, administrado e gerido por instituição financeira, escolhida mediante procedimento seletivo simplificado, dispensada a realização de licitação.
- Explicita que as receitas provenientes do Fundo Patrimonial do Future-se e do Fundo Soberano do Conhecimento são adicionais e não substituem as dotações orçamentárias regulares a que se referem o art. 212 da Constituição e o art. 55 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
- Prevê que os recursos integralizados pela União no Fundo Soberano do Conhecimento, bem como aqueles decorrentes das aplicações financeiras, poderão ser alocados nas ações de fortalecimento do programa Future-se; em ações supletivas, objetivando o auxílio às universidades e aos institutos federais participantes que tenham reduzido potencial de captação de recursos; e em ações voltadas à assistência estudantil, desde que vinculadas ao empreendedorismo ou à pesquisa e inovação.
- Permite que o Ministério da Educação repasse a rentabilidade das cotas do Fundo Soberano do Conhecimento diretamente para as organizações sociais participantes do programa, desde que estas utilizem tais recursos nos objetivos elencados nos eixos ou os destinem para o Fundo Patrimonial do Future-se, não prevendo o mesmo quando se trata das fundações de apoio.
- Autoriza a União a doar, condicionalmente, bens imobiliários para as organizações sociais participantes do programa Future-se, desde que os referidos bens sejam integralizados no Fundo Soberano do Conhecimento ou no Fundo Patrimonial do Future-se, para que constituam recursos de longo prazo, a serem investidos com o objetivo de preservarem os respectivos valores, gerarem receita e fomentarem as atividades de que trata o programa.
- Estabelece que os imóveis de propriedade das universidades e institutos federais participantes, e os direitos reais a eles associados, poderão, a critério de cada instituição e observado o regramento próprio da entidade, ser destinados à integralização de cotas no Fundo Soberano do Conhecimento ou no Fundo Patrimonial do Future-se.
- Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para: permitir que os diplomas de graduação expedidos por universidades estrangeiras sejam revalidados por universidades privadas que tenham curso do mesmo nível e área ou equivalente, desde que os respectivos cursos detenham conceito máximo atribuído pelo Ministério da Educação; e para dispor que o notório saber poderá ser reconhecido por universidade com curso de pós-graduação em área afim, e não necessariamente com curso de doutorado, como prevê o dispositivo legal em vigor.
- Altera a Lei nº 10.735, de 11 de setembro de 2003, para: permitir que a manutenção de centros de estudo e pesquisa, bibliotecas, museus e espaços culturais seja custeada com recursos de doações a patrocínios previstos no âmbito do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac); e considerar as atividades de pesquisa e extensão das Instituições Federais de Ensino Superior como sendo atividades culturais, para que também possam ser custeadas com recursos de doações e patrocínios previstos no Pronac.
- Altera a Lei nº 7.827, de 27 de setembro de 1989, para incluir como beneficiárias dos recursos dos fundos constitucionais de financiamento do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste as organizações sociais e fundações de apoio participantes do programa Future-se, bem como as startups e sociedades de propósito específico criadas no âmbito de referido programa, desde que desenvolvam atividades relacionadas ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste.
Importante destacar que a versão original do Future-se alterava a Lei 12.772/2012, que dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal, para prever que o professor de instituição federal de ensino, ocupante de cargo efetivo do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal, enquadrado no regime de dedicação exclusiva, poderia perceber retribuição pecuniária pela participação nos ganhos econômicos resultantes da exploração da patente ou do registro decorrente de invenção, aperfeiçoamento ou modelo de utilidade e desenho industrial. A nova versão não altera a mencionada lei.
Ademais, a versão original do programa também alterava a Lei 12.550/2011, que autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH, para estabelecer que os hospitais universitários poderiam aceitar convênios de planos privados de assistência à saúde. A nova versão não altera a Lei da EBSERH.
Faz-se imperativo destacar que a nova versão do Future-se reafirma o descompromisso do governo Bolsonaro com a autonomia e com o financiamento público das instituições federais de ensino. Apesar do esforço empreendido pelo MEC na tentativa de maquiar a versão original e de dissimular os verdadeiros objetivos do programa, resta nítido que o pressuposto permanece intacto: reduzir progressivamente o financiamento público das instituições federais de ensino e condicionar a liberação de recursos ao cumprimento de metas estabelecidas pelo MEC, em detrimento da autonomia consagrada no texto constitucional.
Embora a adesão ao programa não esteja mais condicionada à celebração de “contratos de gestão” entre o Ministério da Educação, as instituições federais de ensino e as organizações sociais, agora a adesão ao programa está condicionada à celebração de “contratos de desempenho” entre o Ministério da Educação e as instituições federais de ensino, cabendo ao MEC estabelecer os indicadores de desempenho que deverão ser perseguidos pelas universidades e institutos federais de educação, a fim de que as instituições possam perceber recursos do Fundo Patrimonial do Future-se e do Fundo Soberano do Conhecimento.
O “contrato de desempenho”, na prática um “contrato de gestão”, é o instrumento através do qual o Ministério da Educação pretende minar a autonomia das instituições federais de ensino e condicionar a liberação de recursos extraordinários e até mesmo dos recursos próprios das universidades e institutos federais, uma vez que os recursos próprios serão aplicados no Fundo Patrimonial do Future-se e que somente os seus rendimentos poderão ser utilizados em projetos e programas das respectivas instituições de ensino, nos termos estabelecidos no contrato de desempenho.
Os indicadores de desempenho que virão a ser estabelecidos pelo MEC podem contemplar todas as diretrizes previstas na versão original do Future-se, inclusive diretrizes de governança e de gestão da política de pessoal, que englobam a “estrita observância dos limites de gasto com pessoal” e a contratação de servidores docentes e técnico-administrativos em regime celetista, via organizações sociais.
Ademais, apesar de o MEC ter contemplado as fundações de apoio na nova versão do programa, de modo que as instituições federais de ensino possam celebrar contratos e convênios diretamente com as fundações de apoio para atingirem os resultados esperados em cada eixo, a centralidade das organizações sociais na estrutura do programa resta preservada, uma vez que o MEC poderá repassar a rentabilidade das cotas do chamado Fundo Soberano do Conhecimento diretamente para as organizações sociais participantes do programa; e que a União poderá doar bens imobiliários para as organizações sociais participantes do programa, desde que os referidos bens sejam integralizados no Fundo Soberano do Conhecimento ou no Fundo Patrimonial do Future-se.
Através do chamado Fundo Soberano do Conhecimento, o Ministério da Educação adota uma política de financiamento das instituições federais de ensino no mínimo controversa, uma vez que o mencionado fundo será constituído, estruturado, administrado e gerido por instituição financeira; será composto por diferentes classes de ativos, tais como ações, renda fixa, câmbio e demais ativos financeiros e imobiliários, inclusive públicos; e obedecerá às regras editadas pela Comissão de Valores Mobiliários acerca dos fundos de investimento de mesma natureza. Assim, sujeita-se o financiamento das instituições federais de ensino à lógica do mercado financeiro.
Ao tentar enquadrar as atividades de pesquisa e extensão das Instituições Federais de Ensino Superior como atividades culturais, para que também possam ser custeadas com recursos de doações e patrocínios previstos no Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), o Ministério da Educação desvirtua o Pronac e agride o princípio constitucional da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
As alterações que o MEC pretende inscrever na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional destoam dos pretensos objetivos do Future-se, uma vez que buscam fortalecer o mercado do ensino superior privado, além de flexibilizar o reconhecimento do notório saber, de modo a tornar dispensável a titulação acadêmica em ocasiões diversas.
A redução progressiva do orçamento discricionário do Ministério da Educação está sendo explorada como um instrumento coercitivo, uma vez que a manutenção das instituições federais de ensino está permanentemente ameaçada e que o governo Bolsonaro tenta vender o programa como a única alternativa possível para evitar o colapso das universidades e institutos federais.
A retórica governamental parte do pressuposto de que o Brasil já investe suficientemente em educação e de que é preciso aprimorar a gestão para fazer mais com menos, a partir de diretrizes e mecanismos de gestão empresarial, especialmente em um ambiente de aguda crise fiscal. Mas essa retórica se desmancha no ar quando inserimos no debate a concessão de benesses tributárias a setores do capital (agronegócio e petrolíferas, por exemplo), a isenção de tributos sobre lucros e dividendos (inexistente nos países da OCDE, à exceção da Estônia), a regressividade do sistema tributário brasileiro e a política de austericídio fiscal em curso, que impede a retomada do crescimento econômico, a geração de emprego e renda e consequentemente o crescimento da arrecadação.
Não podemos ter nenhuma dúvida: o caminho para garantir a manutenção das universidades e institutos federais de educação, viabilizar a continuidade do processo de expansão e interiorização, e impulsionar os investimentos em pesquisa, ciência, tecnologia e inovação passa pela defesa intransigente do caráter público e gratuito das instituições federais de ensino, pela preservação da autonomia universitária, pela revogação da Emenda Constitucional 95/16 (teto de gastos), por uma reforma tributária de caráter democrático-popular e consequentemente pela permanente mobilização social contra esta reforma empresarial da educação.
O horizonte que o governo Bolsonaro projeta através do Future-se e do pacote de reformas neoliberais do ministro Paulo Guedes acaba de ser rejeitado nas urnas pelos argentinos e está sendo bravamente combatido nas ruas pelos chilenos. O povo brasileiro há de construir um caminho para que possamos atravessar esta página infeliz de nossa história, derrotar o processo desconstituinte em curso e edificar uma nação ancorada no oceano da liberdade, da igualdade e da solidariedade.