Ex-deputado federal, um dos mais argutos analistas da cena política brasileira nos últimos 50 anos, José Genoino Neto foi presidente do PT e ex-guerrilheiro. Hoje, aos 74 anos, faz da sua experiência e militância política uma análise da conjuntura política nacional. Em entrevista aos jornalistas Luís Costa Pinto e Eumano Silva, ele diz que o caminho da conciliação com as classes dominantes brasileiras não é mais possível. “O sistema econômico, os monopólios, o sistema americano, os monopólios midiáticos não querem acordo com o Lula”, aponta. “O partido precisa voltar a ser o grande rebelde da política brasileira. E o Lula tem que ser o líder desse processo. Caso contrário, morreremos”.
Ele é cético quanto às movimentações do ex-ministro da Integração Nacional (Governo Lula) e da Fazenda (Itamar Franco) Ciro Gomes em busca de se viabilizar como candidato à Presidência da República em 2022 tendo o apoio do centro. “O programa dele é inviável para classe dominante brasileira”, aponta. “Esse desenvolvimentismo do Ciro Gomes, esses caras não aceitam. E, em segundo lugar, tem medo dos arroubos dele. Ele vai ser a anti-esquerda e ao mesmo tempo não vai ser querido pela classe dominante. Se a esquerda se iludir em bons modos, ela se liquida”.
Genoino prega a retomada da rebeldia do PT, que ajudou o partido a se firmar até meados dos anos 80, como possibilidade de se transformar em um instrumento político para povo. Ele diz que a construção do futuro do país e de um caminho viável para as esquerdas brasileiras passa pela volta do PT às suas origens. mas isso, sem abandonar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Esse pessoal do PT que quer aposentar o Lula, é para poder preparar o caminho para um grande acordo. Por exemplo: faz um acordo no Congresso Nacional para que o país tenha um Banco Central independente”, critica. “E por quê? Porque o antipetismo apavora as pessoas. É mais ou menos como o anticomunismo nos anos 50. E o anticomunismo leva a esquerda, nos anos 50, a baixar a cabeça. E quando faz isso, perde a condição de protagonista”.
Resgatar o PT
O PT tem que voltar às resoluções do 5º Encontro, de 1987. O PT materializou ali a seguinte posição. Nós somos um polo de esquerda contra a transição pactuada. Por isso, não fomos ao Colégio Eleitoral, criticamos o Plano Cruzado e participamos da Constituinte com um voto simbólico. Este PT, nós temos de resgatá-lo. O que aconteceu com o PT? A partir de 2002, resolvemos nos acomodar à ordem do Estado brasileiro de 1988. Aquela janela, entramos nela. Estabelecemos uma governabilidade sem questionar as estruturas do Estado. Eu até uso muito uma colocação que fiz, na Fundação Perseu Abramo: “As lições históricas são inúmeras e inequívocas. Quando forças progressistas passam pelo poder sem mudar as estruturas do Estado, elas ficam permanentemente aos riscos de serem capturadas por ondas autoritárias, conservadoras ou neoliberais”.
E foi isso que aconteceu. Como não mudamos as estruturas do Estado – o sistema político, o sistema de Justiça, Forças Armadas e sistema midiático – e nem tentamos mudar!, essas estruturas nos golpearam em 2016. Mesmo a gente fazendo um governo por dentro da ordem e bem comportado, eles não aceitaram a melhoria na qualidade de vida do povo brasileiro. E essa é uma lição dura para nós. Temos que fazer uma autoavaliação daquele processo. O PT precisa fazer uma releitura da sua experiência. O PT é um feito histórico de 40 anos de militância. Esse feito histórico pode dar uma contribuição decisiva para o Brasil.
Encruzilhada histórica
E qual é a encruzilhada? É se nós vamos ser uma força por dentro de uma institucionalidade conservadora… – e essa institucionalidade castra o PT. Eu vou dar um exemplo: o Acre. O PT governou por 12 anos. Mas sempre perdia a eleição nacional lá. E o que aconteceu lá agora? Não elege nem um vereador em Rio Branco.
Veja a política de maneirar dos governadores do Nordeste… Perdemos a eleição na Bahia, no segundo turno. Veja o caso do Ceará… Veja o pragmatismo de Wellington (Dias) no Piauí… O PT é uma força que apenas enfeita o bolo das elites. E a questão central é Lula.
Papel do Lula
O papel de Lula é ser o protagonista deste projeto político rebelde. O Lula entrou na cadeia como o grande conciliador, diferente do Mandela que entrou na cadeia como guerrilheiro. O Mandela saiu da cadeia negociando um pacto. O Lula sai da cadeia não é para negociar um pacto, porque as elites não querem um pacto com Lula. O sistema econômico, os monopólios, o sistema americano, os monopólios midiáticos não querem acordo com o Lula. Porque o Lula pode negociar, mas ele tem uma perna na luta social, que ele jamais pode tirar de lá. Portanto, o Lula tem um papel fundamental.
Esse pessoal do PT que quer aposentar o Lula, é para poder preparar o caminho para um grande acordo. Por exemplo: faz um acordo no Congresso Nacional para que o país tenha um Banco Central independente.
O antipetismo imobiliza o PT
E por quê? Porque o antipetismo apavora as pessoas. É mais ou menos como o anticomunismo nos anos 50. E o anticomunismo leva a esquerda, nos anos 50, a baixar a cabeça. E quando faz isso, perde a condição de protagonista. Foi o que aconteceu com o Partido Comunista da Itália, o PCI. Foi o que aconteceu com os partidos comunistas na Europa. E o PT não pode trilhar esse caminho. E por quê? Porque a classe dominante brasileira é escravocrata e concentra muito poder e não sabe ceder.
E o que se vai ganhar com isso? Discutir a reeleição na Câmara e no Senado é um grande equívoco. O PT nunca fez isso. O PT tem que ser rebelde. Se a esquerda não correr risco, ela vai ser liquidada. Porque esse conservadorismo do faz-de-conta, dissimulado, de amenizar as coisas – transforma direitos sociais em migalhas e assistência, transforma aposentadoria em auxílio emergencial… Se a gente se contenta com esse faz-de-conta, a gente cai na dissimulação de que os direitos sociais viram assistencialismo, os direitos humanos viram direitos privados, e a democracia é apenas uma engenharia de voto de quatro em quatro ou de dois em dois anos. O Brasil perde a democracia. Aquele ambiente de debates, de mobilizações, isso desaparece.
Sem medo do inimigo
A pandemia e a crise sanitária favoreceram isso que eu chamo de hegemonia passiva da classe dominante não bolsonarista. E que ganhou a eleição. O PT precisa estar à frente de um projeto político democrático, popular, radicalmente anti-neoliberal – contra a financeirização da economia, nos oligopólios e nas privatizações – e que não tem medo de falar a palavra socialista. Essa palavra tem que ser resgatada no seu verdadeiro sentido.
A esquerda tem de fazer um balanço desses 40 anos de hegemonia neoliberal. Temos de dar nome aos bois. Não podemos ter medo. O antipetismo só está pegando tão fortemente, porque os petistas têm medo de botar a cara
Temos de botar a cara e dizer quais foram os erros que o PT cometeu nos nossos governos. Porque fizeram essa onda de massacre que nunca foi feita contra nenhum outro partido na democracia. Isso aconteceu porque mexemos com as vacas sagradas da classe dominante brasileira, que foi distribuir renda.
Toda vez que a questão da independência nacional, a questão da democracia e a questão dos direitos sociais entrou na história, houve rupturas autoritárias: Getúlio, 1964… A própria Constituição de 1988 foi retalhada, frustrada e fraudada. Ora… O Teto de Gastos virou cláusula pétrea, enquanto o capítulo dos direitos sociais foi desfigurado. E isso foi feito para dar segurança àqueles que compram os títulos da dívida pública, que é quem vive na oligarquia financeira.
Capitalismo está esgotado
Esse modelo é muito estreito para atender às reivindicações populares. É diferente do que aconteceu na Guerra Fria, quando foi construído o Estado de Bem-Estar Social, que tinha o New Deal. O capitalismo hoje não dá margem de manobra. Quem se iludir com isso, quebra a cara. E qual foi o erro nosso? Não fazer o enfrentamento político quando a gente governou. Mesmo que perdesse, a gente ganhava a narrativa… E estou fazendo essa crítica a mim mesmo. Eu tinha a ilusão de que a democracia era para valer. A classe dominante brasileira não é democrática. Hoje ela limpa as mãos e aparece cheirosa. Mas amanhã, se for preciso, ela sangra de novo e suja as mãos de sangue. Como aconteceu com o AI-5, como aconteceu com a Dilma…
Radicalizar para avançar
Falam agora que temos de resgatar a política, mas quando a política foi criminalizada para atingir o PT, eles bateram palmas. O Moro era o herói deles, dessa turma toda. Não podemos ter ilusão. O caminho é criar um polo de esquerda, cujo protagonismo é o Lula, e esse protagonismo político pressupõe uma frente de esquerda, até para arrancar conquistas dessa classe dominante… No período da história do Brasil, quando a gente radicaliza – no bom sentido – a gente consegue arrancar. Quando a gente baixa a cabeça, a gente vira apenas enfeite na cereja do bolo das elites. Essa é a experiência que a gente está vivendo.
O Golpe de 2016
O PT acumulou até 2002, mas na hora que ele assinou a “Carta aos Brasileiros” e governou no limite das possibilidades da correlação de forças, a gente não tensionou, a gente não ousou, a gente não peitou… E aí, sem ameaça nenhuma, os caras deram um golpe preventivo. O Golpe de 2016 foi preventivo
Por que a Bolívia enfrentou bem? Porque garantiu a mobilização popular, principalmente indígena. O que o Chile está nos ensinando agora? O retorno do fracasso da política de “concertação”, que não mexeu na Constituição. Então, hoje, há novos sujeitos sociais – a luta das mulheres, dos negros, da juventude, da população indígena… A luta democrática radical, por direitos… A esquerda tem uma pauta fácil de defender. Um erro nosso, nessas eleições de 2020, foi não ter polarizado nacionalmente um debate contra esse bonapartismo a la brasileiro e medíocre. Temos que fazer como Ulysses [Guimarães], quando saiu como anti-candidato e salvou o MDB, que acabou obtendo vitórias significativas em 1974. Às vezes você numa eleição não é para ganhar voto e se eleger, mas para marcar território.
A frente de esquerda
A esquerda tem de marcar território, tem que dialogar entre si e o PT tem que aprender que não é só ele de esquerda. Tem de dialogar com o PSOL, com o PCdoB… Tem que estabelecer pontes com setores do PDT e do PSB porque o Ciro Gomes está construindo um suicídio político. O programa dele é inviável para classe dominante brasileira. Esse desenvolvimentismo do Ciro Gomes, esses caras não aceitam. E, segundo, tem medo dos arroubos dele. Ele vai ser a anti-esquerda e ao mesmo tempo não vai ser querido pela classe dominante.
Se a esquerda se iludir em bons modos, ela se liquida. Os bons modos funcionam quando o capitalismo oferece vantagem. O capitalismo ofereceu oportunidades e nós conquistamos estabilidade no emprego, direitos sociais e várias conquistas, mas algumas o PT só obteve porque radicalizou. Se o PT não tivesse radicalizado, teria sido insignificante na Constituinte. O caminho de baixar a guardar é um caminho de não conquistar reformas. Eu quero lutar por uma estratégia de ruptura. Mas só posso conquistar reformas, se eu mostrar os dentes. Se a esquerda não mostrar os dentes, a direita não tem medo da mordida.