O golpe não cansa de encher de vergonha o Brasil. Desde a sessão de Câmara que autorizou o impeachment, descrita como uma “assembleia de bandidos, presidida por um bandido”, que o golpe distribui generosas doses de espetáculos lamentáveis de autoritarismo e violações de direitos ao planeta.
A comunidade mundial desconfiava, há bastante tempo, que o golpe foi dado por uma turma de bandidos, que apeou a presidenta honesta para se apossar e pilhar o país. No mundo todo, se sabia que havia algo de profundamente errado na atual “democracia” brasileira e que estava se instituindo um Estado de exceção que atropelava direitos e garantias individuais. Também era voz corrente, na esfera internacional, que Lula vinha sofrendo uma perseguição judicial, uma verdadeira lawfare destaquedestinada a afastá-lo das próximas eleições. Por isso, ninguém, no cenário mundial, queria ou quer muita conversa com Temer. Somos párias internacionais há tempos.
Faltava, contudo, um “carimbo oficial” dessa desconfiança, desse menosprezo. Não mais. A decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU se encarregou de formalizar essa desconfiança mundial. Em decisão liminar, obrigatória e vinculante para o Brasil, requereu que Lula possa participar das próximas eleições.
O Comitê não proferiu essa decisão, inédita em sua história, à toa. Se Lula, tivesse tido um julgamento justo e tivesse sido condenado com base em provas concretas, se Moro e outros tivessem se comportado como juízes imparciais, se não tivessem ocorridos violações grosseiras dos direitos do ex-presidente, etc., o Comitê teria negado a liminar requerida pelos seus advogados. Mas ocorreu exatamente o contrário. Isso está evidente aos olhos do mundo. Apenas os golpistas e seus braços jurídico e midiático fingem que está tudo bem, que tudo vem sendo feito em estreito respeito à Constituição, às leis e aos tratados internacionais de direitos humanos.
O Comitê, contudo, não se informa e não toma decisões com base na mídia oligárquica brasileira, não segue instruções de procuradores norte-americanos, não se impressiona com Power Points, não idolatra juízes justiceiros, não acredita em “convicções” sem evidências e, sobretudo, abomina condenações sem provas. O Comitê, composto por grandes especialistas internacionais, é sério e confiável.
Quem não são sérios e confiáveis são o governo golpista e a nossa imprensa sabuja. A reação do governo e da mídia oligárquica à decisão do Comitê foi mais do que vergonhosa. Foi patética.
Da simples tentativa de ignorar a decisão até a crítica ignorante da natureza do Comitê, passando pela inacreditável pretensão de qualificá-la como “fake news”, houve um festival de cinismo e estultice poucas vezes visto.
Não vou aqui reanalisar questões já respondidas por nossos juristas sérios, como, por exemplo, que o Brasil aderiu e ratificou, por livre e espontânea vontade, o PROTOCOLO FACULTATIVO AO PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, pelo qual as Partes se comprometem a acatar, como obrigatórias, as decisões do Comitê, que o referido instrumento foi introduzido na ordem jurídica interna em 2009, que o STF decidiu, em 2008, que os tratados e acordos relativos a direitos humanos tem status supralegal, ou seja, estão acima das leis ordinárias, que o Comitê tem grande relevância dentro do sistema da ONU e na arquitetura internacional dos direitos humanos, etc.
Entretanto, gostaria de mencionar alguns fatos interessantes sobre a tramitação desse Protocolo no Congresso Nacional, ocorrida ao longo dos governos Lula. Todos os partidos, todos, sem exceção, apoiaram entusiasticamente o Protocolo. Na Câmara, os relatores da matéria na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional e na Comissão de Constituição e Justiça foram do PSDB, Luiz Carlos Hauly e Bosco Costa, respectivamente. Ambos fizeram relatórios extremamente elogiosos ao Protocolo. Hauly chegou a reclamar da demora na ratificação do instrumento. Escreveu ele:
Muito embora a política brasileira de direitos humanos tenha sido orientada para o aprofundamento da integração aos mecanismos internacionais de proteção, o país só se decidiu pela adesão no ano passado (2005) e não fomos informados do porquê da demora na decisão. Cabe ao Congresso, portanto, envidar esforços para que a aprovação do Protocolo seja realizada da forma mais expedita possível.
No Senado, foi a mesma coisa. Na CRE do Senado, o relator da matéria foi Cristovam Buarque, da oposição, substituído, no dia da votação, pelo relator ad hoc Antonio Carlos Valadares, o qual leu um relatório também muito elogioso ao Protocolo.
Na realidade, durante toda sua tramitação congressual, o Protocolo teve apenas um único e solitário voto contrário. Ganha um chocolate quem adivinhar de quem foi o isolado voto negativo. Sim! Dele mesmo, o deputado Jair Bolsonaro, que votou contra a matéria na reunião da CREDN da Câmara. Porém, o deputado Jair Bolsonaro nem fez considerações sobre o Protocolo em questão, mas sim sobre o “Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos com vistas à Abolição da Pena de Morte”, encaminhado pela mesma mensagem. Bolsonaro, como de hábito, defendeu a pena de morte.
Assim, agora os que menosprezam e criticam o Protocolo, que antes tanto o elogiavam, unem-se à cruzada bolsonarista e fascista contra a ONU e os direitos humanos. Estão em boa companhia. Tutti buona gente!
É assim mesmo. Contra Lula é vale-tudo que joga às favas coerência, escrúpulos e quaisquer compromissos civilizatórios e democráticos. Para anulá-lo politicamente, o golpe escolheu a barbárie cínica e autoritária.
Os golpistas acharam que ficaria por isso mesmo, que o apoio da fake mídia e do braço jurídico fascistoide do golpe seriam suficientes dar ares de normalidade democrática à barbárie autoritária que se instalou no país. Não funcionou. O rei Golpe, o tiranete de república bananeira, está nu para o mundo.
E, enquanto o golpe e seus asseclas se apequenam cada vez mais, se envergonham cada vez mais, Lula se agiganta rapidamente. O golpe o está transformando num novo Mandela. Um notório preso político perseguido por um regime que pratica apartheid social.
Tudo isso tem pouca relação com as questões jurídicas e técnicas que cercam o caso do Protocolo e do Comitê dos Direitos Humanos da ONU. Tem a ver mais com uma questão de fundo que supercede todas as questões formais: Lula é inocente. Lula é preso político. Esse é o ponto. A decisão do Comitê, embora liminar, apenas chancelou oficialmente o que o mundo sempre suspeitou. Chancelou o que a maior parte da população do Brasil, que quer votar em Lula, já sabe.
A estratégia desesperada dos golpistas será a de ignorar ou menosprezar a decisão da mais alta instância internacional de proteção dos direitos humanos. Já foram longe demais e não vão voltar atrás. Continuarão em sua marcha insensata rumo ao fascismo interno e ao isolamento diplomático mundial, fiando-se no apoio dos EUA e do capital internacional. Já eram párias, agora se tornarão bandidos internacionais. Em breve, poderão entrar na lista da Interpol.
Lula, condenado sem provas, é inocente, é Ficha Limpa. Ficha Suja, muito suja, é o golpe. Ficha Suja mundial.