O governo golpista não está intervindo no Rio por causa da segurança pública. O Golpe está intervindo no Rio por causa de sua própria segurança.
Era evidente, desde o princípio, que a agenda ultrarregressiva e antipopular do Golpe demandaria crescente geração de um Estado de exceção. De uma democracia tutelada pelos interesses do grande capital, auxiliado pela mídia corporativa e por uma casta burocrática formada por juízes e procuradores neoudenistas.
A condenação de Lula em segunda instância demonstrou que o golpe cruzou o Rubicão da democracia e mandou às favas todos os pruridos com a vida democrática e a soberania popular.
A intervenção no Rio pode ser o primeiro passo para a implantação de um escancarado regime autoritário civil-militar, que assegure a implantação da agenda ultraneoliberal e que se contraponha à candidatura de Lula e a qualquer possibilidade de resistência popular ao Golpe.
O maravilhoso desfile da Paraíso de Tuiuti mostrou que a população não engole mais o enredo destrutivo do Golpe. Por outro lado, com a desistência de Huck fica cada vez mais evidente que o Golpe não tem solução político-democrática para se firmar e se perpetuar. O Golpe teme a democracia e as eleições. O Golpe e sua agenda têm de se firmar e perpetuar na marra.
Ressalte-se que o “caldo de cultura” para a “solução autoritária” já foi criado pelo Golpe e pela mídia venal, que difunde o medo na população.
O processo do golpe parlamentar que levou ao poder a “turma da sangria” e a Lava Jato partidarizada corroeram o sistema de representação, criminalizaram a atividade política e retiraram a credibilidade das nossas instituições democráticas. Com efeito, a tentativa canhestra de criminalizar o PT, Lula e o modelo socialmente progressista que vinha vigorando até então acabou resultando na criminalização de toda a atividade política e do sistema democrático de representação.
O voto popular, base última das democracias, foi cassado pela quadrilha que tomou de assalto o poder. A partir daí, parafraseando Nietzsche, tudo se tornou permitido e o Brasil acabou mergulhando na pior crise econômica, política e institucional da sua história.
O fato é que o Golpe abriu a caixa de Pandora do autoritarismo brasileiro. Nas manifestações de rua que antecederam o golpe, os partidos conservadores se misturaram com os grupos francamente protofascistas que pediam intervenção militar e condenavam a democracia, a política e tudo que fosse considerado de esquerda ou progressista.
Ninguém, no centro e na direita, se preocupou em delimitar terreno. Ninguém se preocupou em defender a democracia e a atividade política. Na ânsia de tirar o PT do poder a qualquer preço, fez-se terra arrasada da democracia brasileira e de suas instituições. Cassaram 54,5 milhões votos e apearam a presidenta honesta para colocar em seu lugar um grupo que todo mundo, já na época, sabia perfeitamente ser uma quadrilha da pior espécie. Não importava. O importante era tirar a Dilma e promover as reformas ultraneoliberais que restituiriam as taxas de lucro das oligarquias conservadoras, que nunca tiveram compromisso real com democracia.
O resultado é que, desde o fim da ditadura militar, que a democracia não anda tão em baixa no cenário brasileiro.
Essa afirmativa inquietante pode ser corroborada pela pesquisa anual feita pelo Instituto Latinobarômetro, que, desde 1995, afere a credibilidade das democracias na América Latina.
Nessa pesquisa, pergunta-se aos entrevistados se consideram que a democracia é preferível a qualquer outro regime político ou se, em certas circunstâncias, um regime autoritário pode ser preferível. Pois bem, o apoio dos brasileiros à democracia como o regime preferível a quaisquer outros caiu de 54%, em 2015, para apenas 32%, em 2016.
Ou seja, hoje em dia 68% dos brasileiros acham que um regime autoritário poderia ser preferível à democracia ou ainda consideram que seria indiferente ter um ou outro sistema. Para nossa vergonha, estamos na lanterninha em toda a América Latina, nesse aspecto. Só perdemos para a Guatemala, onde o mesmo índice de apoio à democracia é de 31%.
O mesmo fenômeno explica porque pré-candidatos claramente identificados com a ditadura militar e o autoritarismo, como Bolsonaro, por exemplo, desfrutam hoje de grande popularidade, superando, em muito, políticos tradicionais, à exceção de Lula que não para de crescer nas pesquisas. A fúria autoritária que tomou conta do país com o processo golpista explica também porque hoje qualquer juizinho de província se julga no direito de proibir exposições de arte, condenar reitores universitários ao suicídio ou de impor a “cura gay”. O Brasil se tornou um país de reacionários medíocres e caricatos.
Não se enganem. A maior parte da população aplaudirá a intervenção, contra a opinião do Comandante do Exército, General Villas Boas, que acha esse modelo de intervenção “desgastante, perigoso e inócuo”. A intervenção não resolverá nada, mas poderá criar a falsa sensação de que as coisas estão se resolvendo com o uso autoritário da força, não com o voto.
A depender do resultado, e com o prestimoso auxílio da mídia, poderão ser feitas outras intervenções, não só em Estados, mas contra movimentos sociais e partidos políticos. Os procuradores da Lava Jato e os juízes comprometidos com o Golpe com certeza acharão “argumentos jurídicos” para tal. Sempre acham.
O Brasil vive um momento muito parecido com o vivido pela Alemanha na República de Weimar. Lá, os nazistas aproveitaram bem o sentimento de insegurança trazido pela crise para chegar ao poder. Aqui, a população, ante a crise causada pelo próprio Golpe, poderá ser convencida que a melhor solução é a “saída autoritária”.
É a estratégia que Naomi Klein descreveu na “A Doutrina do Choque: A Ascensão do Capitalismo do Desastre”. Cria-se um ambiente de caos, difunde-se o medo e voilá! temos que nos render às “soluções” ultraneoliberais. Desse modo, a crise provocada pelo próprio Golpe, o desastre social do Golpe, que causa insegurança e medo, poderia ser usado para tentar perpetuá-lo.
Claro que não seria uma quartelada. Seria algo mais complexo e sutil. Porém, há muitas maneiras de manejar ou melar uma eleição, ou mesmo de postergá-la. Com a mídia e o judiciário ajudando, o céu (ou o inferno) é o limite.
Já não vivemos numa democracia. Vivemos, no máximo, numa semidemocracia. Mas a intervenção no Rio pode ser o ensaio da passagem da atual semidemocracia para um regime autoritário mais duro, justificado pelo medo e a insegurança e legitimado por um judiciário cada vez mais conservador e prepotente.
E pode não ser apenas no Brasil. Com a desculpa da “crise humanitária”, o Brasil do Golpe poderia participar de uma intervenção militar na Venezuela. Com isso, as duas maiores rendas petroleiras da América do Sul ficariam nas mãos de quem apoiou o Golpe desde o início.
Os tempos são ruins, muito ruins. Mas sempre podem piorar. O Golpe pode estar ensaiando a sua transformação em ditadura.
É melhor botar as barbas de molho. E o samba nas ruas.