Cerca de sete mil indígenas estão em Brasília desde o início da semana para o Acampamento Terra Livre (ATL), que segue até o dia 14 de abril com o tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”. Plenárias e manifestações na forma de caminhada pelos quatro quilômetros que separam o acampamento da Praça dos Três Poderes fazem parte do dia a dia da jornada, que conta com apoio de várias entidades. Inclusive na cozinha, montada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e pelo Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST). Os manifestantes dão voz a cerca de 200 povos que, por sua vez, representam a parcela da população mais afetada desde janeiro de 2019 no Brasil.
E não foi sem aviso. Já na campanha presidencial, em 2018, Bolsonaro anunciava a suspensão de qualquer demarcação desses territórios. Para piorar, em 2020, em meio à pandemia, acelerou-se o processo de invasão das terras indígenas, especialmente por garimpeiros. Em resposta ao aumento de casos de Covid-19 nas aldeias, o governo federal, que pela Constituição é responsável por sua proteção, decidiu que tais cuidados, incluindo a inviolabilidade das reservas, só seriam adotados nos casos em que a demarcação das terras estivesse homologada. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF), que em fevereiro derrubou a decisão do Planalto e o obrigou a elaborar plano emergencial para o controle da pandemia nas terras indígenas. O relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, chegou a anotar que os atos administrativos evidenciam “a clara persistência” da Fundação Nacional do Índio (Funai) em desassistir esses povos.
Mas os processos de demarcação continuam cobertos por uma espessa névoa que, há dois anos, o senador Paulo Rocha (PA), tenta desfazer. Finalmente aprovado no Senado, requerimento (REQ 1153/2020) de autoria do líder do PT obriga o ministro da Justiça, Anderson Torres, a explicar o andamento de 18 processos envolvendo terras indígenas em 11 estados, nas cinco regiões do país. Alguns casos dependem de portaria declaratória, etapa que antecede a demarcação e que é de responsabilidade do Ministério da Justiça; outros, aguardam decretos de homologação, ou seja, são situações já resolvidas e que há anos aguardam a assinatura do presidente da República para que sejam retirados ocupantes não-índios e registradas as terras na Secretaria de Patrimônio da União. Atualmente, dos 13% do território do país já demarcados, apenas 2% não estão na região Norte. Por isso, segundo Paulo Rocha, “a luta é pela demarcação principalmente de terras nas outras quatro regiões do país”.
O ministro Anderson Torres, que há menos de um mês concedeu a Bolsonaro – sim, isso mesmo – a “Medalha do Mérito Indigenista”, terá que mostrar ao Senado os últimos três despachos do Executivo sobre cada um dos processos, incluindo a data do ocorrido e seu responsável. Também terá que explicar as motivações jurídicas para cada análise feita e quais prazos foram estabelecidos para a conclusão dessas análises, entre outras respostas requeridas pelo líder do PT.
No pedido de informação, Paulo Rocha questiona a utilização, pelo governo, de parecer da Advocacia Geral da União (AGU) derrubado em 2020 pelo ministro Edson Fachin, do STF. “Em vez de interpretar a lei, o governo tenta criar uma ordem jurídica nova”, acusa o senador. O documento da AGU, que suspendeu as demarcações, aplica por conta própria a tese do marco temporal, pela qual indígenas que não reivindicavam suas terras judicialmente em outubro de 1988 não teriam direito sobre elas.
“O parecer inseriu novos pressupostos de mérito para fins de conceituação do que é uma terra indígena, que não estão previstos na Constituição Federal de 1988, na Lei n.º 6.001/1973 (Estatuto do Índio), no Decreto n.º 1.775/1996 (que disciplina a demarcação dessas terras) e na Convenção 196 (Reconhecimento dos direitos indígenas) da Organização Internacional do Trabalho (OIT)” – sustentou Paulo Rocha no requerimento.
A situação piora na medida em que o governo tenta mudar a lei para permitir a invasão de terras indígenas. Na opinião de Paulo Rocha, é mais que urgente saber a quantas andam esses processos de demarcação: “o governo mais cruel da história do país quer rever demarcações já consagradas e abrir as terras indígenas para exploração particular e empresarial, especialmente de minérios. Isso para citar só dois dos projetos que integram o chamado ‘Pacote do Veneno’ em tramitação no Congresso. É uma flechada atrás da outra no coração da nossa ancestralidade”.
Os interesses de Bolsonaro, explicitados nos projetos mencionados por Paulo Rocha, parecem explicar o jogo de empurra resumido pelo ministro Barroso em seu relatório ao STF no início do ano: “de um lado, não se demarcam novas terras ou se homologam demarcações já realizadas. E, de outro lado, utiliza-se o argumento da não homologação para retirar a proteção das terras não homologadas e de suas comunidades. Ora, a não homologação de tais terras deriva de inércia deliberada do poder público, que viola o direito originário de tais povos, previsto na Constituição, cabendo à União o dever (e não a escolha) de demarcar suas terras”.