A possibilidade de indenização do valor da terra nua a donos de fazendas que hoje ocupam território indígena poderá representar uma saída negociada para os conflitos fundiários entre índios e fazendeiros. A proposta voltou a ser defendida pelo senador Delcídio do Amaral (PT-MS) durante a audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado que, na manhã desta quinta-feira (01/11), discutiu a situação dos Guarani-Kaiowá, considerada pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) como a etnia mais ameaçada atualmente no País.
Na última terça-feira (30/10), o senador já havia sustentado, em discurso ao Plenário que essa seria a melhor alternativa para assegurar a concretização das demarcações de territórios indígenas.
A proposta de Delcídio coincide com a do procurador da República no município de Dourados (MS), Marco Antonio Delfino, que também participou da audiência da CDH.
Delfino é autor de uma ação civil pública com esse teor e acredita que a medida poderia dirimir parte significativa dos conflitos. Ele calcula que o montante necessário para indenizar fazendeiros hoje ocupando terras indígenas seria de R$ 1 bilhão — o total das terras reivindicadas pelas etnias indígenas é de cerca de 100 mil hectares. A alternativa apresentada por Delcídio recebeu o apoio do representante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber César Buzatto, e do senador Cristóvam Buarque (PDT-DF).
A presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Marta Maria Azevedo, que participou da audiência, disse que a proposta precisa ser analisada pelo Governo Federal. Segundo ela, a chamada “judicialização” das demarcações (as ações judiciais movidas por fazendeiros contra o reconhecimento de terras indígenas ocupadas por eles) é o maior entrave à garantia dos direitos dos índios. E pior: nos últimos10 anos, nenhuma ação foi julgada, como relatou o procurador Delfino. O resultado disso é que, no mesmo período, apenas dois mil hectares de terras demarcadas foram efetivamente ocupados por comunidades indígenas.
Atualmente, Constituição brasileira estabelece que o direito indígena sobre a terra precede toda e qualquer posse ou propriedade e que, em caso de identificação de uma área como indígena, apenas as benfeitorias serão indenizadas aos fazendeiros. Delcídio, porém, pondera que a possibilidade de indenização também para a terra nua, no caso de propriedades devidamente tituladas, poderia reduzir as inúmeras contestações das demarcações de Terras Indígenas levadas à Justiça.
Situação
No Mato Grosso do Sul — que tem a segunda maior população indígena do Brasil e onde está concentrada a maioria dos 40 mil integrantes da etnia Guarani-Kaiowá — a situação torna-se mais dramática pelos altos índices de violência. O estado é recordista nacional de assassinatos de índios. Foram 250, nos últimos oito anos, segundo o Cimi, além de 190 tentativas de assassinato, 176 suicídios e 49 atropelamentos.
Acossados por pistoleiros e fazendeiros, vivendo em reservas cada vez menores e sem perspectivas, os Guarani-Kaiowá também registram elevados índices de suicídios — 863, desde 1986. Sem ter como plantar, os índios sofrem de desnutrição crônica: 90% deles dependem de cestas básicas distribuídas pelo governo para sobreviver e, mesmo com a ajuda, pelo menos 50 crianças morreram de má nutrição, desde 2005. Espoliados da terra para produzir ou caçar, muitos deles acabam trabalhando em condições subumanas nas lavouras de cana-de-açúcar para a indústria do metanol, justamente a atividade econômica que mais avança sobre as terras tradicionais. Jovens e até crianças são empregados como bóias frias, com forte impacto nas taxas de evasão escolar.
O senador Delcídio destaca que a animosidade contra os índios — fruto do desconhecimento da maioria da população não índia no estado — é tradicionalmente explorada e instrumentalizada politicamente pelas forças conservadoras, afirmação. O professor indígena Otoniel Guarani relatou durante a audiência que o governador do Mato Grosso do Sul, André Pulcinelli, chama os índios de “dinossauros”. “O que as pessoas precisam ter em mente é que os conflitos também prejudicam o desenvolvimento do estado, não apenas a qualidade de vida das etnias”, lamentou Delcídio. “O conflito fundiário afasta investimentos”.
“A realidade dos Guarani Kaiowá é seguramente a maior tragédia envolvendo uma etnia indígena em nosso País”, afirmou a presidente da Funai. Ela apelou aos parlamentares presentes à audiência para a necessidade de o Congresso acompanhar mais de perto a situação e defendeu uma ampla articulação de órgãos públicos e da sociedade civil. “A FUNAI sozinha não dá conta”, afirmou Marta.
Na última terça-feira (30/10), por iniciativa da Advocacia Geral da União (AGU), foi cassada a liminar que garantia a reintegração de posse ao fazendeiros locais, que hoje estão nas terras dos Guarani, apesar das áreas já terem sido demarcadas por um decreto do ex-presidente Lula.
Cyntia Campos
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