Governo interino do Brasil e os governos de Argentina e Paraguai se opõem à liderança venezuelana na instituiçãoO Mercosul atravessa, nos últimos meses, um impasse em relação a sua Presidência pró-tempore. Segundo as normas do bloco, a Presidência rotativa, que foi ocupada pelo Uruguai entre janeiro e julho, corresponde à Venezuela no período de agosto a dezembro de 2016. Entretanto, o governo interino do Brasil e os governos de Argentina e Paraguai se opõem à liderança venezuelana e têm tentado impedir que o país assuma a Presidência do Mercosul.
Representantes dos Estados-membros do bloco já se reuniram algumas vezes nos últimos meses para tentar solucionar a questão, mas, até agora, nada foi resolvido. Caso esse impasse se mantenha por mais tempo, o que pode acontecer com o Mercosul?
Tendo em vista que o presidente do Mercosul é quem detém o poder de decisão — desde convocar reuniões entre os membros até negociar acordos — , existe a possibilidade de o bloco ficar “travado” no período em que a Presidência temporária permanecer vaga. Tal “vácuo de poder” poderia prejudicar os países-membros do Mercosul, já que o bloco visa promover o crescimento político e econômico da região.
Para especialistas ouvidos pelo Opera Mundi, contudo, mesmo que o cenário se mantenha inalterado, sem uma resolução sobre a Presidência pró-tempore do bloco, uma paralisia total do Mercosul é improvável.
“Do ponto de vista formal, o Mercosul acontece mesmo com reuniões semestrais. O problema de uma possível paralisia é que iria retroceder conquistas sociopolíticas do bloco e enfraquecer a integração latino-americana, mas não seria claramente um prejuízo político ou econômico (para os países-membros)”, afirma Tatiana Berringer, professora de Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC).
Nildo Ouriques, professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e presidente do IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos), defende o direito da Venezuela à Presidência do Mercosul, mas acredita que o impasse na liderança não deve prejudicar o andamento das negociações do bloco. “Este escândalo que está acontecendo não vai paralisar porque o ritmo dos negócios não paralisa”, acredita o professor.
Já Clarissa Ribeiro, mestre em Relações Internacionais com destaque para instituições regionais da América do Sul e doutoranda em regionalismo comparado pelo programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP), acredita na possibilidade de estagnação do bloco. “Pode existir um risco de paralisia caso Brasil, Argentina e Paraguai insistam em não deixar a Venezuela assumir, mas acho difícil dizer porque ainda não se sabe quais órgãos seriam afetados pela permanência desse impasse”, diz Ribeiro.
Ela cita a suspensão do Paraguai em 2012, após a destituição do então presidente Fernando Lugo, considerada pelos Estados-membros como uma ruptura da ordem democrática no país, como um momento similarmente extraordinário no bloco que afetou somente um aspecto da relação entre a nação e o Mercosul. “Quando o Paraguai foi suspenso, foi só do ponto de vista político, não econômico. O país manteve relações comerciais com o Brasil”, afirma a especialista.
Contudo, tanto Ouriques quanto Berringer acreditam ser possível que Brasil, Argentina e Paraguai — chamados de “tríplice aliança” pela Venezuela — insistam em não permitir que o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, assuma a liderança do bloco. José Serra, chanceler brasileiro, que tem reiterado nas últimas semanas que “a Venezuela não vai assumir o Mercosul”, como afirmou na última quarta-feira (17/08), tem tido uma atuação “desastrada” e “imprudente” em relação ao impasse no bloco, classifica o professor da UFSC.
“A atuação de Serra diante do impasse é desastrada e imprudente. Ele está demonstrando despreparo para toda e qualquer ação, mas ele tem recursos para bancar sua posição e não deixar a Venezuela assumir. O governo (do vice-presidente no exercício da Presidência do Brasil, Michel) Temer é um governo que veio para fazer todas e cada uma das reformas impopulares, mas o Serra está indo muito além disso. Ele quer fazer do Mercosul um enfrentamento ideológico com a Venezuela”, acredita Ouriques.
“Ele pode continuar criticando o sistema político venezuelano, mas não pode desconhecer os protocolos que regem a Presidência rotativa do Mercosul, que, nesse momento, cabe à Venezuela. Então não sei se ele vai bancar (sua posição) no final”, pondera.
Para Berringer, Paraguai, Argentina e Brasil veem a Venezuela como um “empecilho” por sua atitude de “enfrentamento às grandes potências” e a oposição à liderança venezuelana é, na realidade, uma tentativa de tirar o país do Mercosul e “dar um golpe” no bloco. “Não há nenhum argumento para dizer que a Venezuela não é democrática e não pode assumir a Presidência rotativa”, diz a professora da UFABC.
“Desde quando houve a proposta no Mercosul sobre a entrada da Venezuela, já houve muita oposição político-partidária no Brasil. Muito se fala do Paraguai (que se opunha à adesão do país, então comandado por Hugo Chávez, ao bloco), mas também foram três anos de debate no Congresso brasileiro. Houve sempre uma resistência clara da própria burguesia brasileira. Então a questão com a Venezuela não é uma questão democrática, é uma questão de enfrentamento às grandes potências. O discurso anti-imperialista de Maduro e Chávez é o que incomoda a burguesia brasileira e o ministro golpista interino Serra”, acredita Berringer.
Os três especialistas ouvidos por Opera Mundi elogiaram a postura do Uruguai, que defende o direito de a Venezuela assumir o cargo. “Politicamente, o Uruguai tem ocupado um espaço muito importante, se sobresaído como defensor da democracia e da integração latino-americana. O Uruguai não só vai bancar sua posição como vai comprar a briga, e vai sair ganhando em ter tido a ousadia de não sucumbir ao peso dos outros membros”, afirma Beringer.
Para a professora da UFABC, caso a Venezuela seja de fato impedida de assumir a Presidência pró-tempore do Mercosul, o país seria prejudicado mais no aspecto político do que econômico. “É um enfraquecimento do (presidente venezuelano, Nicolás) Maduro”, acredita.
Já Ouriques não vê consequências negativas caso isso aconteça. “Não assumir não terá nenhuma consquência para a Venezuela, porque a Presidência temporária do Mercosul não tem nenhuma capacidade executiva, não tem efeito prático. É um cargo puramente político”, afirma.
Ribeiro diz ser possível que Brasil, Paraguai e Argentina estabeleçam alguma sanção contra a Venezuela ou até a rebaixem a membro associado do bloco, mas acredita que “nenhum membro iria querer comprometer a relação comercial com a Venezuela”, visto que a nação detém 92,7% das reservas de petróleo do bloco e fornece-o para os países-membros que, por sua vez, exportam seus próprios produtos.
Presidência colegiada
Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai se reuniram nesta terça-feira (23/08) em Montevidéu para tentar, mais uma vez, resolver o impasse em relação à Presidência pró-tempore do Mercosul. Um dos tópicos que seriam discutidos na reunião de hoje é a possibilidade de uma Presidência colegiada, ocupada por um conselho de embaixadores. A proposta foi sugerida pela chanceler argentina, Susana Malcorra, e é corroborada pelo chanceler paraguaio, Eladio Loizaga, e por José Serra. A medida, porém, já foi descartada pelo chanceler uruguaio, Rodolfo Nin Novoa, que disse não estar prevista no regulamento no Mercosul uma Presidência coletiva.
Para Berringer, a proposta bancada por Buenos Aires, Brasília e Assunção indica uma “típica postura golpista”. “Quando não queriam que o Jango (João Goulart) assumisse no Brasil (em 1961), sugeriram o Parlamentarismo. (O cargo coletivo) não está nas regras do Mercosul, eles querem rasgar toda a história do bloco, todos os acordos, só para a Venezuela não assumir”, diz a professora da UFABC.
“Essa proposta é uma violência”, diz Ouriques. “Os dois protocolos do Mercosul (Ouro Preto e Ushuaia) preveem a Presidência rotativa em ordem alfabética. Qualquer improviso para dar um sentido a essa proposta, eu diria, é uma vergonha. Não podem dizer que a Venezuela não cumpriu as regras democráticas. O Serra não tem a menor autoridade para dizer isso. A Venezuela é mais democrática que nós (Brasil)”, afirma o professor da UFSC.
Opera Mundi
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