O Paraguai sempre foi conhecido, no Brasil, como o país dos produtos falsificados. Com efeito, de lá chegavam ao mercado brasileiro uma grande variedade de bens falsificados: roupas, sapatos, medicamentos, cigarros, uísque etc. Antes, alguns desses produtos eram made in Paraguai. Hoje, quase todos provêm de Taiwan e da China, e apenas passam, com grande facilidade, pelo grande entreposto comercial que é o Paraguai.
Pensávamos que a criatividade dos falsificadores estava se esgotando, mas nos enganamos. A oligarquia paraguaia, herdeira do ditador Stroessner, a mesma que sempre se beneficiou com o contrabando, a falsificação, a corrupção e o fisiologismo, acaba de criar um produto novo: o impeachment falsificado.
Não há outro nome possível ao que aconteceu com o legítimo presidente do Paraguai, Fernando Lugo, que cometeu o único crime de tentar regularizar a situação fundiária do país, alicerçada em títulos tão falsos como uísque paraguaio. Trata-se realmente do impeachment falsificado, que encobre um verdadeiro e autêntico golpe de Estado.
Embora a constituição paraguaia assegure, em seu artigo 225, a possibilidade do “juízo político” contra o presidente, a maneira como esse processo se deu contraria os mais elementares princípios democráticos. Em menos de 36 horas, a velha oligarquia paraguaia tirou do colete um série de acusações sem nenhuma prova consistente contra Lugo, montou o processo, julgou e sentenciou.
Nunca antes na história das democracias viu-se um julgamento tão expedito. Acreditamos que nem mesmo um ladrão de galinhas já tenha sido julgado dessa forma numa autêntica democracia, já que esse pseudojulgamento obviamente inviabilizou o devido processo legal e o amplo direito à defesa, pedras angulares do estado democrático de direito.
Mas a impressão que dá é que o impeachment paraguaio não contrariou somente as normas democráticas internacionalmente consagradas, mas até mesmo a Teoria da Relatividade. Com efeito, um processo tão célere demandaria que os papéis se movessem acima da velocidade da luz, o que Einstein considerava impossível.
Entretanto, o impeachment falsificado parecer ter doce sabor ao paladar autoritário de alguns. O Departamento de Estados dos EUA prontamente reconheceu o julgamento inusitado e o governo ilegítimo que dele resultou. Tal presteza parece indicar que as autoridades norte-americanas participaram também, de alguma forma, da hipersônica deposição de Lugo. Não surpreenderia. Os EUA estariam apenas renovando a sua longa e notável tradição de “apoio democrático” aos golpes de Estado em nossa região. Uma tradição que vem sendo inquietantemente ressuscitada em tempos mais recentes. Em 2002, foi o falido golpe clássico contra Chávez. Em 2009, houve o exitoso “golpe branco” contra Zelaya, em Honduras. Hoje, é o impeachment paraguaio. Amanhã, poderão ocorrer golpes de todas as cores e matizes contra Evo Morales, Rafael Correa, Hugo Chávez (de novo), Cristina Kirchner e quaisquer outros governos que possam contrariar os interesses estratégicos da única superpotência.
A América do Sul, que ainda passa por um bom momento econômico, tem um grande mercado em expansão e recursos naturais fabulosos, inclusive petróleo. Para um país em crise e com uma recuperação econômica muito lenta, a nossa região volta a interessar, como fonte de matérias primas e como um mercado dinâmico que poderia absorver a produção que não pode ser mais desovada no mercado interno. Há também o óbvio interesse geoestratégico de contrarrestar a crescente influência da China em nosso subcontinente. É claro que tais interesses seriam mais bem atendidos por governos conservadores, que provavelmente aceitariam, de bom grado, uma integração à la ALCA e políticas externas alinhadas e bem-comportadas. Pior para nós: é sempre desconfortável a “atenção” da única superpotência.
Porém, o impeachment falsificado cai bem também no paladar das forças conservadores locais e regionais. A reação dos grandes grupos da mídia é particularmente interessante. Sempre prontas a denunciar quaisquer supostas ameaças à liberdade de expressão e à democracia, as mídias regionais não se acanham em defender golpes de Estado, com os argumentos mais estapafúrdios. Quando o presidente Lugo renegociou o pagamento pela energia de Itaipu, antes vendida a um preço risível, a nossa mídia conservadora só faltou pedir a invasão do Paraguai. Hoje, defende com unhas e dentes a “soberania paraguaia” e demanda ao governo brasileiro que não intervenha nos “assuntos internos” do Paraguai.
O problema é que o impeachment falsificado não é somente um “assunto interno” do Paraguai. É um assunto que diz respeito a todos os países do subcontinente. Que diz respeito ao Brasil.
Quase todas as nações da região estão empenhadas em processos de integração, particularmente o do Mercosul e o da Unasul, que demandam compromissos democráticos de seus Membros. Na realidade, a integração regional nasceu da redemocratização da região, que possibilitou a aliança entre Brasil e Argentina, grandes rivais geopolíticos na época das ditaduras.
Assim, a integração e a redemocratização são processos gêmeos, que se complementam e se reforçam mutuamente. Por isso, há neles cláusulas democráticas, como as que constam do Protocolo de Ushuaia e do Protocolo Adicional ao Tratado Constitutivo da Unasul sobre Compromisso com a Democracia, que preveem sanções severas, inclusive o fechamento das fronteiras, contra os Estados Partes que quebrem ou ameacem quebrar a ordem democrática. Do ponto de vista político, a integração regional, da qual o Brasil é grande beneficiário, tem como norte inequívoco o fortalecimento das democracias da região.
Portanto, o impeachment falsificado do Paraguai representa uma agressão não apenas à frágil democracia paraguaia, mas também a todas as democracias do subcontinente. É um tapa na cara de todos aqueles que lutaram, durante, décadas, contra as terríveis ditaduras da região. Que lutaram contra a tortura, os desaparecimentos, a censura, e pela prevalência política do voto popular, hoje desrespeitado pela oligarquia paraguaia.
Para essas forças progressistas e democráticas, o impeachment falsificado do Paraguai tem um sabor amargo que revive as páginas mais negras da história política da região. Gosto de uísque falsificado. Páginas que julgávamos definitivamente ultrapassadas.
É preciso reagir. Embora sanções econômicas fortes não sejam convenientes, pois afetariam o sofrido povo paraguaio, é preciso que o governo ilegítimo encastelado em Assunção sofra sanções políticas e diplomáticas significativas. No mínimo, o Paraguai deveria ser suspenso dos direitos políticos e administrativos assegurados pelo Mercosul e Unasul, até que sejam realizadas novas eleições, em 2013. Dificilmente isso fará que Lugo volte ao poder, dado o seu grande isolamento institucional e partidário, mas é necessário dar um recado firme de que golpes de Estado, quaisquer que sejam suas roupagens, mesmo as mais juridicamente elegantes, não são mais tolerados no subcontinente.
Além de ser necessária à proteção da democracia da região, tal suspensão ainda teria efeitos colaterais positivos. Ela poderia proporcionar a incorporação definitiva da Venezuela como Membro Pleno do Mercosul, condição que vinha sendo obstaculizada obstinadamente pelo Senado paraguaio, e a negociação de acordos Mercosul/China, que não se concretizavam devido ao fato de que o Paraguai é um dos poucos países do mundo, e o único na América do Sul, que ainda reconhecem Taiwan. Ambas as coisas são do interesse estratégico do Brasil.
O que não pode acontecer é a inação. A aceitação passiva de um golpe de Estado perpetrado nas nossas barbas e contra um Estado Parte do Mercosul. Para aqueles que não chamam ditadura de “ditabranda”, isso é intolerável.
Se não se fizer nada, cria-se um precedente muito perigoso. Um precedente que será muito comemorado pelas forças reacionárias e obscurantistas da região. E comemorado com uísque paraguaio. Tão falso e “trucho” como o impeachment e o governo ilegítimo instalado hoje em Assunção.
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança do PT no Senado