O debate sobre a Proposta de Emenda à Constituição nº 03/2021, na Câmara dos Deputados, apelidada de PEC da imunidade no Congresso e repercutida como PEC da impunidade nas redes sociais, foi uma demonstração inequívoca do quanto nossas instituições estão confusas diante do papel a exercer na atual conjuntura política, e acerca da delimitação do exercício dos poderes da República em seus pilares constitucionalmente definidos.
O parlamento possui dois problemas a enfrentar. O primeiro é a garantia da imunidade parlamentar contra os arroubos do Poder Judiciário, um ativismo que há muito tempo já extrapolou o razoável. O outro é a defesa da democracia e da Constituição Federal, não dando guarida a que o princípio da liberdade de expressão seja usado como esteio para discursos de ódio.
As questões, se colocadas em contexto jurídico-social, não são antagônicas nem excludentes, embora estejam neste momento assim postas, diante da total imprudência de pautar um texto dessa natureza uma semana após a grande crise causada pela prisão do Deputado Daniel Silveira, provocando atropelo no rito normal de tramitação de emenda constitucional e vinculando, inexoravelmente, o debate ao caso concreto, além, obviamente, dos problemas do próprio conteúdo da proposta.
O texto discutido com parlamentares pelos líderes do chamado “Centrão”, em articulação direta do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, teve, ao menos, três versões. Ao final das tentativas de negociação, o relatório lido em plenário pela Deputada Margarete Coelho, na sexta-feira (26), tinha como foco de divergência o caput do art. 53, da Constituição Federal, alterado para definir que a imunidade parlamentar seria absoluta, “cabendo, exclusivamente, a responsabilização ético-disciplinar por procedimento incompatível com o decoro parlamentar”.
O art. 5º, XXXV da Constituição Federal brasileira de 1988, considerado o princípio do direito de ação ou de inafastabilidade da jurisdição, possui a seguinte redação: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. O texto foi uma resposta aos atos da ditadura civil-militar, em que o art. 11 do repulsivo AI-5, por exemplo, previa que: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos complementares, bem como os respectivos efeitos.”
Não por acaso, o direito de ação foi posto como um dos incisos do art. 5º da Constituição de 88, dos direitos e garantias fundamentais, senão para impor de forma definitiva e não mutável, que toda e qualquer lesão de direito poderá ser conhecida e apreciada pelo Poder Judiciário.
Disso não pode se excluir, nem mesmo, cidadãos que sejam eleitos para mandatos populares, exceto por uma visão míope do que seja imunidade parlamentar. Portanto, a inclusão no caput do art. 53, da PEC 3/2021, afirmando que somente o parlamento tem competência para averiguar determinados crimes cometidos por parlamentares, é obviamente inconstitucional.
Diante dos impasses, a proposta foi enviada à Comissão Especial para seguir rito normal, sem prazo para voltar ao Plenário.
Dito tudo isso, o outro lado dessa mesma moeda é que, de forma não corporativa, com serenidade e tempo, o parlamento brasileiro deve sim repensar formas de reequilíbrio da relação entre os poderes. Uma que seja garantidora de direitos, não de impunidades.
Os superpoderes conferidos aos órgãos do sistema de justiça, com ênfase no Judiciário e no Ministério Público, que remontam ao próprio texto constitucional originário, com autonomia total e sem real controle externo, já produziram um número excessivo de abusos de autoridades, em que juízes, promotores e procuradores comportam-se como justiceiros e algozes, retirando do processo qualquer racionalidade e intenção de busca da verdade.
Desde junho de 2019, por exemplo, o mundo assiste estarrecido às cotidianas revelações de conversas nada republicanas de membros do sistema de Justiça corrompidos pelo poder e pelo desejo de fama e visibilidade. E não se sabe se esses agentes serão punidos, embora seus crimes sejam de conhecimento público. Não apenas em decorrência da origem ilícita das provas, mas da ausência de real controle, em formato que inclua a participação social e que obrigue o respeito às regras que constituem os pilares processuais no Estado Democrático de Direito.