No mundo paralelo que encena todas as manhãs de terça para os apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro ignora solenemente a escalada inflacionária que ocorre em plena crise do coronavírus e prejudica principalmente as famílias mais pobres. Nesta terça (28), antes de se reunir com representantes do agronegócio, ele jurou que a economia brasileira está “dando certo”.
Na pantomima rotineira ao lado do ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes, Bolsonaro citou como exemplo de bom desempenho a geração de novos empregos, no momento inédito em que há mais trabalhadores desocupados que ocupados no país. Guedes, que em setembro disse que o aumento do preço dos alimentos seria produto da “enxurrada de dinheiro aos mais pobres”, fez coro com o chefe: “A economia está voltando em V como a gente achava que ia voltar”.
O presidente ainda insistiu na falácia que repete desde o início da pandemia: “Lembra que eu falava que tinha que tratar do vírus e da economia? E o pessoal dando pancada em mim e ‘nhenhenhe’. Olha o problema aí. Se não é o trabalho da equipe econômica, auxílio emergencial, socorro micro e pequenas empresas, rolagem de dívidas de estados…”, regurgitou, apropriando-se de iniciativas que surgiram e foram aprovadas no Congresso Nacional, apesar do desgoverno Bolsonaro.
Governo ilusionista
Mas a realidade insiste em desmentir a dupla de ilusionistas, e pesquisa CNT/MDA divulgada na segunda (26) mostrou que 90,9% da população brasileira considera que o preço dos produtos está aumentando muito. Dos itens constados como mais caros pelos entrevistados, que escolheram duas respostas, os principais foram alimentos e bebidas (95,6%) e contas mensais (40,6%).
A disparada no preço dos alimentos reflete diretamente na inflação percebida pelas famílias mais pobres, que mais do que triplicou em relação à das mais ricas em 2020. De janeiro a outubro, ela foi de 3,68%, enquanto a da alta renda ficou em 1,07%. Os dados são de outro estudo, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Os pesquisadores do Ipea consideraram informações do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a inflação oficial, e do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – 15 (IPCA–15), a prévia da inflação. Ambos são apurados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O levantamento simula que o desempenho do IPCA de outubro será idêntico ao do IPCA-15, que apresentou alta de 0,89%, maior índice para o mês em cinco anos. Segundo os dados do IPCA-15, que subiu 2,31% entre janeiro e outubro, comer e beber ficou 9,75% mais caro no período.
Considerados apenas os alimentos consumidos no domicílio, comprados em mercados, o avanço de preços no ano foi de 12,69%. Como consequência, a inflação percebida pelas famílias de renda mais baixa subiu a 5,48% nos 12 meses encerrados em outubro. Entre os mais ricos, a inflação foi de 2,50% no período.
Alimentos pesam 30%
“Os alimentos no domicílio representam 30% do cálculo da inflação da baixa renda. Enquanto que entre a dos mais ricos não chega a 10%. Então, o impacto do aumento de preços acaba sendo muito menor entre os mais ricos”, disse ao ‘Estado de S. Paulo’ Maria Andréia Parente Lameiras, técnica da Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas do Ipea.
O instituto usa os dados do IPCA para calcular a inflação em seis faixas de renda familiar mensal, conforme a cesta de consumo adequada à realidade financeira de cada grupo. O grupo de renda mais baixa engloba famílias que recebem menos de R$ 1.650,50 mensais, enquanto que a faixa mais rica tem renda domiciliar mensal acima de R$ 16.509,66 mil.
Andréia, que é responsável pelo cálculo do Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Rendam, explica que o encarecimento da comida penaliza mais as famílias de baixa renda, que já destinam uma fatia maior do orçamento mensal para a alimentação.
“O que tem subido é aquilo que mais pesa no consumo das famílias mais pobres: arroz, feijão, carne, óleo de soja, ovos, leite. Os alimentos já pesam muito, e dentro da alimentação esses são os que mais pesam. São alimentos básicos, de difícil substituição. Vai trocar o arroz e feijão pelo macarrão? Mas o macarrão também está subindo, porque a farinha de trigo está mais cara”, ressaltou.