A intolerância do governo Bolsonaro ameaça a sobrevivência das 13 comunidades indígenas presentes no Rio Grande do Norte.
Habitadas pelas etnias Tapuia e Potiguara, essas comunidades estão entre as 724 que, Brasil afora, aguardam a demarcação de seu território, sob a pressão constante de madeireiros, ruralistas, garimpeiros, jagunços, milicianos e outras expressões da violência que, há 520 anos, ameaçam os primeiros donos do nosso território.
É uma realidade ainda mais perversa do que a enfrentada nas 487 terras indígenas homologadas e reservadas, que não estão livres do assédio, mas ao menos dispõem de um instrumento legal para tentar proteger seu território.
No Rio Grande do Norte não temos terras indígenas demarcadas e apenas a comunidade de Sagi/Trabandaem, em Baía Formosa, conta com um processo de reconhecimento e demarcação nas mãos da Funai, ainda em estágio muito inicial.
No nosso estado, é particularmente preocupante a situação das comunidades indígenas Tapará, no município de Macaíba, e Katu, em Canguaretama, que vêm sendo sistematicamente acossadas por usineiros de cana de açúcar que tentam desalojá-las à força, promovendo queimadas no entorno das aldeias.
É em favor dessas comunidades que venho articulando entidades da sociedade civil, antropólogos, indigenistas e democratas para formalizar um apelo aos organismos das Nações Unidas que acompanham e arbitram sobre a causa indígena.
Na nossa primeira reunião, em fevereiro deste ano, fiquei particularmente tocado ao ouvir do Cacique Luiz, da Comunidade Katu, que ele esperava há 20 anos por uma iniciativa como essa.
Tomamos a decisão de apelar aos organismos da ONU ainda antes de esgotar as tentativas de solução interna por falta de respostas aos esforços das duas comunidades para obter respostas das autoridades brasileiras.
A política indigenista do Estado Brasileiro está desmontada. A FUNAI sofre com cortes orçamentários e ingerência política — não esqueçamos que um dos primeiros atos deste governo, ainda no dia da posse, foi tentar transferir esse organismo para o Ministério da Agricultura, submetendo-o aos interesses do agronegócio.
Levar a denúncia e apelo para os organismos internacionais é o recurso do qual dispomos neste instante. Vivemos hoje no Brasil uma situação especialmente ameaçadora às comunidades tradicionais.
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro vem assegurando que “não haverá um centímetro de terra demarcada” nem para os indígenas, nem para os quilombolas.
Essas comunidades já são especialmente vulneráveis por viverem uma cultura diversa da dominante. Exercitam — e têm este direito — outros modos de estar no mundo, de produzir, de se relacionar com o ambiente. São donas de seus próprios saberes e fazeres.
Sob um governo Bolsonaro, o risco a esses grupos sociais é potencializado ao limite da pura e simples extinção física. Não apenas das comunidades, frequentemente ameaçadas de desalojamento e dispersão, mas dos próprios indivíduos, permanentemente submetidos ao cerco, à violência, à agressão e ao assassinato.
Explicar à ignorância, à intolerância e ao fanatismo eurocêntrico que há outros modos de viver que não o da sociedade dominante é uma tarefa cada vez mais difícil.
O Estado Brasileiro, que um dia gestou um Rondon, hoje está controlado pelos que advogam a passagem do trator, aparando todas as expressões de diversidade cultural.
Nunca é demais lembrar que, ainda candidato, Bolsonaro clamava pela “obrigação das minorias se submeterem à maioria” — uma maioria que ele define qual seja, por sinal.
Causa asco, mas não espanto, que o atual ministro Educação sinta-se à vontade para dizer que “odeia a expressão ‘povos indígenas”. Causa repulsa, mas não surpresa, que o titular do Ministério do Meio Ambiente sugira que se aproveite “a tranquilidade” decorrente da pandemia — esta mesma pandemia que já matou 25 mil brasileiros — para “passar com a boiada” sobre a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, os povos indígenas e o patrimônio histórico e cultural do País.
As comunidades indígenas do Nordeste vivem uma situação especialmente alarmante, confrontadas com a possibilidade concreta de extinção e até pela negação de seu reconhecimento.
Apesar dos esforços para ampliar a demarcação de terras indígenas em governos anteriores — notadamente nos governos Lula e Dilma — o Nordeste responde por apenas 11 % do território indígena demarcado no País.
Hoje, enfrentamos mais um obstáculo, que é a pendência em torno do Parecer Normativo da Advocacia-Geral da União (AGU) que pretende estabelecer um marco temporal para o direito à terra dos habitantes originais deste País.
Segundo esse parecer da AGU, suspenso por liminar do ministro Luiz Roberto Fachin, a condição para que uma comunidade indígena requeira o direito sobre um território é que esse grupo já estivesse na terra reivindicada antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O julgamento dessa questão chegou a ser iniciado, em Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, mas acabou adiado para depois da pandemia, quando será apreciado presencialmente pelos integrantes daquela Corte.
Enquanto isso, as comunidades indígenas do meu estado e outras 711 em todo o País permanecem na incerteza.
O Rio Grande do Norte carrega a marca do massacre da Confederação dos Cariris (1682-1713). Esse movimento, protagonizado pelos Kiriris, impôs 30 anos de resistência indígena à ocupação portuguesa de seu território e à escravização de seu povo. A razia final imposta por militares portugueses levou, erroneamente, à crença de que não haveria povos indígenas remanescentes no nosso estado.
Mas 13 comunidades indígenas — Apodi, Caboclos, assentamento Marajó, Amarelão, Serrote de São Bento, Açucena, Assentamento Santa Terezinha, Cachoeira/Nova Descoberta, Tapará, Lagoa Grande, Lagoa do Mato, Katu e Sagi/Trabanda — desafiam e desmentem a extinção.
É urgente a demarcação dessas áreas, assegurando às comunidades a proteção legal a seu território e o reconhecimento de direitos ancestrais.
*Jean-Paul Terra Prates é advogado, economista, dirigente sindical e atual senador pelo PT do Rio Grande do Norte
**Artigo originalmente publicado na Revista Fórum