Retrocesso não se customiza. Essa é uma lição que muita gente está aprendendo da forma mais amarga. Não é uma camiseta à qual se acrescentam recortes, alegorias e adereços ao gosto do freguês. Golpismo é um caminho no qual quem dá o primeiro passo não tem a menor garantia de determinar sentido, direção ou duração da caminhada. É uma caixa de Pandora que, uma vez aberta, exige muito esforço para que se possa recolher os monstros que saem lá de dentro e ameaçam a normalidade.
Não foi por falta de aviso. Quando alguns disfarçavam seu desapreço pela democracia fingindo birra de criança mimada contra o resultado de uma eleição limpa, os alertas dos democratas caíram em ouvidos surdos.
Quando outros sequestraram a justiça e o combate à corrupção para fazer o embate político — que não tiveram coragem de fazer olho no olho e de cara limpa —quem avisou do risco foi acusado de ter “bandido de estimação”.
Quando uma chusma decidiu depor uma presidenta honesta, sem qualquer crime no currículo, chamaram isso de “pacto de salvação” — com o Supremo, com tudo.
É muita arrogância achar que se pode empurrar a democracia no precipício e decidir até onde ela cai.
Que o diga Carlos Lacerda, que passou décadas escoiceando a democracia, até ser cassado por um golpe que ajudou a tramar.
A relativização da ordem democrática costuma morder a mão até de quem a alimenta.
O safanão da semana — em um país que já não suporta mais tantos solavancos — a notícia de que o ministro da Defesa teria imposto condições para o respeito ao processo democrático. “Sem voto impresso, não tem eleição”, teria dito o general Braga Netto.
A manifestação precisa ser devidamente investigada. As sucessivas ameaças de golpe desfechadas por Jair Bolsonaro e seus aliados precisam de um basta. Numa democracia não cabem intimidações ao Congresso Nacional ou ao Supremo. É um acinte colocar em dúvida a realização de eleições. Se confirmada a manifestação, há que haver punição.
Enquanto isso, que o fato sirva de lição e contribua para mobilizar todos — rigorosamente todos — os que, como Ulysses Guimarães, tenham ódio e nojo das ditaduras. E que nunca mais neste país se volte a tratar a democracia com descaso.
Artigo originalmente publicado no Congresso em Foco