Osvaldo Aranha, político gaúcho e chanceler brasileiro, costumava dizer ironicamente que as ideias no Brasil costumam demorar a passar na alfândega. A esquerda brasileira precisa sintonizar as ondas do que acontece no mundo.
As experiências eleitorais recentes nos Estados Unidos (Bernie Sanders), França (Jean-Luc Mélenchon), e no Reino Unido (Jeremy Corbyn), concentram a seguinte lição: em tempos atuais, a esquerda, quando assume um programa de crítica radical do neoliberalismo e do capitalismo financeiro, polariza, aglutina e cresce; quando, ao contrário, assume um discurso envergonhado e conciliador diante do mercado e das elites, definha organicamente, deixa de polarizar, aglutinar e crescer.
Além disso, ao não polarizar, sucede a tragédia das tragédias: a ausência de uma esquerda de verdade cede espaços ao crescimento da direta neofascista. Não se trata de apenas ganhar eleições, embora isto seja fundamental, mas de a esquerda sair fortalecida e largo horizonte de futuro.
Na semana passada, Guilherme Boulos declarou em entrevista à BBC que “Lula não unificará esquerda se propuser ‘mais do mesmo’”. A provocação de Boulos é interessante, mas a questão de fazer “mais do mesmo”, na realidade, nem se põe. O fluxo da temporalidade é irrevogável. Condições objetivas de conciliação, como as da primeira eleição de Lula em 2002 não se repetem mais, a não ser como miragem saudosista.
As próximas eleições presidenciais brasileiras, em razão de tudo que aconteceu de 2014 para cá – o não reconhecimento do resultado eleitoral pela oposição, o golpe de Estado, as reformas neoliberais radicais, etc. -, sejam elas antecipadas ou em 2018, serão as mais duras de nossa história. O Brasil se encontra em uma encruzilhada histórica: a grande questão para a esquerda, nos próximos embates, não é apenas institucionalmente acumular forças, elegendo mais e melhores bancadas parlamentares. É preciso acumular forças, mas é urgente haver um salto de qualidade na sociedade.
Tratemos de abordar o caso da eleição desta quinta-feira (08/06) no Reino Unido. Desde que se antecipou as eleições parlamentares no Reino Unido, era dado como certo uma vitória folgada da primeira ministra conservadora, Teresa May. A antecipação foi considerada por muitos uma “jogada de mestre” da primeira ministra.
A ideia-força do marketing da campanha conservadora era persuadir o eleitor que Teresa May tinha uma vistosa pose de “estadista””, sendo “a mais preparada” para conduzir o processo do Brexit. O discurso foi bem sucedido pela direita. Teresa May engoliu o UKIP (partido da direita radical) com promessas chauvinistas de medidas duras de biopoder, visando controlar o fluxo de imigrantes à ilha.
Entretanto, para surpresa de muitos, a eleição emparelhou pela esquerda. Eleições não se ganham de vésperas, principalmente no Reino Unido. Basta recordar que nas eleições de maio de 1945, que se deram no exato momento de comemoração de vitória na guerra, um dos estadistas indiscutíveis da vitória, o mito Winston Churchill, amargou a derrota para o trabalhista Clement Attlee, que governou até 1950.
A vitória de Attlee se explica pelo fato, demonstrado por Eric Hobsbawm em a “Era dos Extremos”, que o soldado inglês se sacrificou nos campos de batalha persuadido pelas promessas que o mundo do pós-guerra seria mais justo. Não é à toa que o documento fundamental de montagem do welfare state britânico, o Relatório Beveridge, foi aprovado no parlamento em 1942, um ano após os bombardeios alemães sobre Londres. Para dar sangue, suor e lágrimas, o contrato social precisaria mudar mais na frente.
Antes dado como candidato fora do páreo, o candidato trabalhista, Jeremy Corbyn, começou a crescer vertiginosamente, fortemente apoiado nos eleitores mais jovens. Corbyn cresceu porque conseguiu girar o eixo do debate de campanha. Em vez de a ordem do dia ser a melhor administração do fato consumado do Brexit, o assunto de campanha passou a ser o welfare state, especialmente o serviço universal de saúde (National Health Service – NHS) e a desprivatização das universidades Britânicas. Além disso, Corbyn não faz de rogado em se afirmar claramente socialista, bem como é corajoso ao declarar que os ataques terroristas em solo britânico são uma espécie de efeito bumerangue das guerras de conquistas promovidas pelo Império Britânico no mundo árabe e islâmico. O espectro da cobiça de dominação imperialista inglesa continua a cobrar um preço.
O welfare state tem raízes profundas na sociedade britânica. Não acaba de uma canetada, como escreve Perry Anderson na conferência “Balanço do Neoliberalismo[1]”. Tanto que sobreviveu até mesmo à assunção destrutiva de uma Margaret Thatcher (1979), uma personalidade portadora de uma convicção de tipo religioso na autorregulação dos mercados, até então uma ideologia exótica mesmo entre os conservadores.
O giro de Corbyn se assemelha à capacidade de impor um discurso contra a corrente que tiveram recentemente Bernie Sanders nas eleições americanas e Jean-Luc Mélenchon nas eleições francesas. Sem desprezar as peculiaridades nacionais da política e a história particular de cada eleição, mais que diante de fatos puramente locais, começa a emergir uma realidade política mais global.
Vários analistas interpretam que, caso o adversário de Trump fosse Sanders, em vez da desgastada Hillary Clinton, talvez o resultado das eleições americanas tivesse sido diferente. Hillary representava o “neoliberalismo progressista” – conforme a expressão provocadora de Nancy Fraser em artigo[2] magnífico – onde discutiu o projeto de aliança entre os yuppies cosmopolitas do Vale do Silício e Wall Street e as justas aspirações de identidade. De outro lado estava o velho senador progressista por Vermont, Sanders, que propôs um programa de valorização das questões identitárias, que giravam em torno de uma aliança com o prec ariado, sejam os jovens escolarizados e desempregados ou a classe operária tradicional.
Igualmente, o programa de Mélenchon, e sua coligação “França Insubmissa” percebeu o desgaste do revezamento leopardiano de comadres – “mudar para que tudo fique como está” – entre republicanos e socialistas para ver quem melhor conduz a racionalidade do capitalismo financeiro. Assim, resgatou nas raízes do radicalismo histórico francês, não só de esquerda socialista, elementos de afirmação de um programa radical e sem subterfúgios. Não foi ao segundo turno, mas se posicionou firmemente para novos embates. Enquanto isso, o tradicional partido socialista se esvaiu complemente.
Há um traço de união nos desempenhos de Sanders, Mélenchon – bem como no desempenho que se anuncia de Corbyn. Os três perceberam a novidade – evidente também no Brasil a partir das mobilizações de junho de 2013 – que está ocorrendo no mundo um deslizamento para os pólos do espectro político.
[1] Perry Anderson: Balanço do neoliberalismo: http://paje.fe.usp.br/~mbarbos
[2] Nancy Fraser: https://www.dissentmagazine.or
*Publicado originalmente na segunda-feira (5) pelo Jornal GGN