Um rojão é atirado contra um cinegrafista que registra uma manifestação, mas torna-se o alvo e acaba morrendo. Um garoto, negro e pobre, é acorrentado pelo pescoço a um poste porque moradores de uma rua chique do Rio querem fazer uma “limpeza” na área e, na telinha de tevê, uma comentarista acha a situação normal e defende a ação. É sobre tais manifestações, a forma como parte da sociedade está pensando e utilizando o argumento de que na democracia pode tudo que a jornalista Tereza Cruvinel, colunista do jornal Correio Braziliense, apresenta a síntese do momento que estamos atravessando, onde a imprensa teve papel preponderante na construção canhestra de atos que estão na fronteira entre o fascismo e a liberdade de expressão.
Tereza Cruvinel inicia seu texto observando que, finalmente, “o governo proporá uma lei para coibir a violência nos protestos” e, como disse Vanessa, filha do cinegrafista Santiago Andrade, talvez sua morte não tenha sido em vão. “Talvez nos desperte para a gravidade deste tempo em que penetramos, pautado pela violência e pela intolerância, desejoso de convulsão e não de paz, fruto da lenta instalação de um certo pensamento entre nós”, afirma a jornalista.
Ela continua e afirma: “É verdade que não há direita ou extrema direita organizada em partidos no Brasil. Todos eles se dizem de esquerda, centro-esquerda ou centro. Mas as atitudes e as ideias que melhor traduzem a direita foram se consolidando nos últimos 10 anos. Ao longo deles, vimos crescer a intolerância para com o divergente, o preconceito contra os pobres (especialmente a partir do advento do Bolsa Família), e entre os pobres, o desejo de ostentar e consumir, estimulado pelo aumento da renda. Nesse tempo, ganhou força o moralismo udenista e os democratas de fachada, que buscavam pretexto em qualquer palha seca para denunciar ‘cerceamento’, ‘tentativas de controle’ , ‘ameaças à liberdade de expressão’. Depois veio a negação das instituições políticas, especialmente do Congresso e dos partidos, que já falharam muito, mas são insubstituíveis no funcionamento da democracia. A urgência é de aperfeiçoá-los com uma reforma política, ou de mudar-lhes a composição nas próximas eleições. A quem, senão a esta direita autoritária e difusa, sem rosto e sem partido, interessa a desmoralização das instituições que vêm sendo construídas a tanto custo, desde o fim da ditadura?, questiona.
Segundo Tereza Cruvinel, o PT, para chegar ao poder e nele ficar, cometeu seus erros. “Não exatamente os de que é acusado, levando à cadeia seus melhores quadros. Não soube, de todo modo, enfrentar a vertigem, contrapor-se aos que se valeram de seu infortúnio para fomentar a descrença na política. A internet contribuiu, e, em seu território, os contendores passaram a se esgrimir com uma violência verbal inaudita, incivilizada, agressiva. Puderam livremente ofender, tripudiar, agredir, desqualificar, provocar. A princípio, digladiavam os representantes da polaridade PT-PSDB. Depois, outras forças entraram no jogo e o dominaram”, destaca.
Para mostrar esse cenário, sombrio, a jornalista aponta seu espanto ao constatar o que pensa um seguidor de sua página nas redes sociais. Mas o que manifesta e defende esse indivíduo: “A violência é a única forma de luta e o sangue é o combustível da história”. Lembra Tereza Cruvinel que a frase é de Stalin, no contexto da guerra contra Hitler. “Tudo isso fomos achando normal. As palavras ajudaram a gestar as ações. As manifestações autênticas e democráticas de junho abriram a porteira para a violência que mostrou sua cara em julho. As máscaras de Anonymous eram vendidas na Rua 25 de Março, em São Paulo, por meros R$ 0,50. Achamos normal, mas obviamente alguém estava pagando. Surgiram os black blocs, mas ai de quem criticasse essa ‘nova forma de militância’”.
Tereza Cruvinel observa que encerrada a fase de protestos contra o aumento de preço das passagens de ônibus, o próximo foco de ação foi as ações para a realização da Copa do Mundo e, em seguida, os tais rolezinhos nos shoppings centers, o que reacendeu o vulcão da violência, tendo como resultado centenas de ônibus incendiados, quebra-quebra no metrô, barbárie num presídio e justiça com as próprias mãos nas ruas. “E tome discursos semifascistas, vindos até de uma apresentadora de televisão”, diz ela, acrescentando que “nós, imprensa, fizemos a nossa parte nesta construção canhestra”.
Na parte final de seu texto, a jornalista também revela como se deu uma construção negativista que alimenta o discurso frágil de que é preciso mudar “isso que está aí”, na falta de argumentação. O papel das televisões na construção desse cenário foi curvado para as ações do autoritarismo vândalo.
Tereza Cruvinel afirma que “ante a força de Lula e a debilidade da oposição, surgiu a ideia de que a imprensa deveria substituí-la. Nenhum presidente foi hostilizado como ele, nenhum governo tratado como o dele. Mais dos que as críticas do PT aos meios de comunicação, foi a transfiguração do jornalismo em oposicionismo que mais fomentou as hostilidades à mídia nas manifestações. Mas, como elas podiam ser úteis para desgastar o governo Dilma, as emissoras de televisão se curvaram ao autoritarismo vândalo, cobrindo os protestos com carros não identificados. Nesta fervura, fatalmente aconteceria uma morte, e ela precisa servir como hora do espanto para todos. Finalmente, o governo anuncia que proporá uma lei que, assegurando o sagrado direito de manifestação, possa coibir a violência nos protestos. É preciso ter a coragem do cientista Wanderley Guilherme dos Santos para dizer: ‘Sou a favor da criminalização e da repressão às manifestações criminosas, a saber, as que agridam pessoas, depredem propriedade, especialmente públicas, e convoquem a violência para a desmoralização das instituições democráticas e representativas’. Endosso”.
Para finalizar, ela conclui que de nada servirá a nova lei se “não acordarmos para o fato de que, nesta batida, vamos dar em algum buraco. É preciso dar combate às ideias e às ações que não servem à paz e à democracia”.