Não é só o mundo acadêmico brasileiro e mundial que se vê perplexo com a construção de um golpe parlamentar contra uma presidenta eleita pela vontade popular de 54 milhões de brasileiros. Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade e isso se torna evidente a cada dia. Porém, para imputar um crime contra ela, o relator do processo no Senado, Antônio Anastasia (PSDB-MG), sem qualquer cerimônia, subverteu a legislação que deve ser aplicada ao caso e numa típica pedalada jurídica usou um trecho e ocultou outros da obra “Comentários à Constituição do Brasil”, de autoria dos juristas Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, para embasar sua tese.
Rapidamente, nas mídias sociais, os autores a quem Anastasia recorreu para fazer seu relatório mostraram-se contrariados com a pedalada jurídica. Os três posicionaram fortemente contra o emprego por Anastasia de uma citação, mas que omitia – maliciosamente ou não – a parte seguinte, na intenção de reverter o contexto original da obra, conforme reportou Paula Sicchierolli, do Jornalistas Livres.
No site emporiododireito.com, Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Alexandre Gustavo divulgaram nota em que tecem críticas ao relatório de Anastasia. “A citação não considera de modo adequado a integridade do texto, nem do trecho referido. Cabe lembrar, ademais, que, embora estejamos numa República democrática em que, com certeza, o presidente é responsável, o sistema de governo constitucionalmente adotado é o presidencialismo e não o parlamentarismo. Logo, no Brasil, o presidente da República só pode ser impedido quando estiver configurado crime, segundo a Constituição e nos estritos termos da legislação que a própria Constituição se refere”.
Nesse sentido, continua a nota dos especialistas, “cabe dizer que é perceptível desde o início qual seria a estratégia do relatório. O que se faz, ao fim e ao cabo, revela, justamente, o que nós, e os demais autores aqui citados, temos dito desde o início: trata-se de uma flagrante inconstitucionalidade que sacrifica o caráter jurídico-político, portanto, constitucional, do instituto do impeachment para reduzi-lo apenas à vontade de uma maioria tardiamente formada”.
Vale notar que o Advogado-Geral da União, ministro José Eduardo Cardozo, apontou outra pedalada jurídica de Anastasia quando este citou trecho da obra “O Federalista”, de Alexander Hamilton. Isto porque Anastasia pinçou da obra apenas aquilo que lhe servia, o que era conveniente, e omitiu um parágrafo que poderia derrubar seu relatório.
Juristas brasileiros e internacionais, que têm procurado entender o golpe, fazem as seguintes indagações: sendo Antônio Anastasia mestre em direito, advogado constitucionalista e professor de direito constitucional, sua atitude não caracterizaria dolo? Redigir um documento oficial, que definirá algo grave e definitivo como o processo de impeachment de uma presidente da República, repleto de intencionais anticonstitucionalidades seria admissível, sem maiores contestações? Não fosse a explícita intenção de ‘adaptar’ qualquer coisa que caiba na lacuna crime de responsabilidade, até se poderia acreditar em incompetência. Mas a manobra, no entanto, ficou vergonhosamente escrachada e mostrou que o objetivo é um só: tirar a presidenta a qualquer custo.
Abaixo, na íntegra, segue a nota crítica ao relatório Anastasia produzida por Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia:
A citação feita no Relatório Anastasia [1] do texto dos comentários ao art. 85 da Constituição da República que escrevemos [2] não considera de modo adequado a integridade do texto, nem do trecho referido. Para nós, o fato do rol do art. 85 ser exemplificativo reforça ainda mais a exigência prevista no parágrafo único do mesmo artigo da Constituição de que a lei especial e regulamentar tipifique e defina os crimes de forma completa, afastando, portanto, “tipos abertos”, bem como a interpretação extensiva ou por analogia – o que não é possível por se tratar de crime. Indicamos, portanto, a leitura do trecho dos Comentários à Constituição do Brasil:
“Para os crimes de responsabilidade valem os dispositivos constitucionais e sua regulamentação através da Lei 1.079/50.” E, logo em seguida, “O rol previsto no art. 85 é meramente exemplificativo, constando sua definição completa naquela citada norma infraconstitucional”, ou seja, a Lei 1.079/50. Este é o último parágrafo do texto dos comentários ao artigo 85, in Comentários à Constituição do Brasil, p. 1287. Depois de ter explicado, portanto, que a Lei 1.079/50 tipifica os crimes.
O Senador Anastasia, assim, nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos, pois o fato de o elenco do art. 85 ser exemplificativo não significa que esteja afastada a exigência de previsão legal taxativa dos crimes de responsabilidade, conforme o parágrafo do mesmo artigo.
Como na Carta aberta a Anastasia que foi encaminhada por professores, estudantes e servidores da Faculdade de Direito da UFMG:
2) A CR/88 dispõe em seu art. 85, parágrafo único, que uma lei especial definirá os crimes de responsabilidade e estabelecerá as normas de processo e julgamento do impeachment. Esta lei, como já afirmado pelo STF no julgamento do caso Collor em sucessivos mandados de segurança (MS 21.564, MS 21.623 e MS 21.68) e agora na ADPF 378 é a Lei 1079/50. Entendemos que em consonância com o devido processo constitucional as hipóteses de crime elencadas pela lei do impeachment devem ser atendidas taxativamente, não cabendo, portanto, interpretações extensivas ou analógicas em respeito às garantias do próprio sistema presidencialista, e do ordenamento jurídico como um todo, em que restrições de direitos devem ser interpretadas de forma taxativa.”[3]
Para a Constituição da República, justamente porque o rol é exemplificativo que a lei especial regulamentará tipificando os crimes, por uma questão de segurança jurídica! Ou seja, cabe à lei especial definir por completo. Como diria Gomes Canotilho, estamos diante de uma vinculação expressa do legislador à Constituição. Sabemos, pois, quais são os crimes de responsabilidade e qual o procedimento de impeachment porque a Constituição estabeleceu os parâmetros no art. 85, incisos e parágrafo, e no art. 86 (também art. 51, I, e art. 52, I), e a Lei 1.079/50 os regulamentou, prevendo, taxativamente e definindo de forma completa, os tipos penais.
Não cabe assim interpretação extensiva e analógica dos crimes completamente definidos pela lei especial prevista no parágrafo do art. 85. O preceito fundamental em questão é mesmo o princípio da reserva legal. Somos, pois, daqueles que concordam com Marcelo Neves[4] e Alexandre Morais da Rosa[5] no sentido de que crime de responsabilidade é crime e se submete à reserva legal, em lei específica, no caso, a lei 1.079/50, no que foi recepcionada[6]. O fato de o rol do art. 85 não ser numerus clausus não afasta, muito antes pelo contrário, a exigência constitucional, prevista no parágrafo único do art. 85, de que a lei especial taxativamente o faça. Ou, como dissemos no texto dos Comentários, defina completamente os crimes. Questão mesmo de segurança jurídica, não há como se falar em “tipos abertos”. Ou seja, o Senador Anastasia termina por tirar conclusões com as que jamais concordaremos.
A estratégia do Relatório Anastasia é a de se admitir que não há a tipificação taxativa dos crimes de responsabilidade, mas que isso “não é um problema”, pois que “o tipo seria aberto” e, então, poder-se-ia a ele aderir legislações e capitulações que lhe são estranhas, como a responsabilidade fiscal ou qualquer outra. Ora, se há previsão de hipóteses de “crime de responsabilidade” e “crime comum” de Presidente da República, a serem apreciados em processos diferentes, é justamente porque há crimes, ainda que diferentes.
Cabe lembrar, ademais, que, embora estejamos numa República democrática em que, com certeza, o Presidente é responsável, o sistema de governo constitucionalmente adotado é o presidencialismo e não o parlamentarismo. Logo, no Brasil, o Presidente da República só pode ser impedido quando estiver configurado crime, segundo a Constituição e nos estritos termos da legislação a que a própria Constituição se refere.
Nesse sentido, cabe dizer que é perceptível desde o início qual seria a estratégia do relatório. A estratégia de pretender descaracterizar o caráter de crime do crime de responsabilidade para defender a possibilidade de afastar a exigência jurídica de taxatividade dos crimes previstos em lei especial, abrindo espaço para a interpretação extensiva e por analogia, defender uma responsabilidade objetiva, sem dolo, e por atos que a Presidente não cometeu, como bem mostrou Alexandre Morais da Rosa[7], mesmo no caso das chamadas “pedaladas fiscais” (sic) referentes ao Plano Safra, fato atípico posto que não há de se confundir o atraso no repasse dos valores referentes a subvenções sociais com operações de crédito e onde sequer há atos cometidos pela Presidente da República, como bem mostrou, mais uma vez, Ricardo Lodi[8].
O que se faz, ao fim e ao cabo, revela, justamente o que nós, e os demais autores aqui citados, temos dito desde o início: trata-se de uma flagrante inconstitucionalidade que sacrifica o caráter jurídico-político, portanto, constitucional, do instituto do impeachment para reduzi-lo apenas à vontade de uma maioria tardiamente formada.
Notas e Referências:
[1] Ver Relatório, p. 53. Disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/05/04/veja-aqui-a-integra-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia.
“No mesmo sentido, encontramos fartos ensinamentos na doutrina, podendo ser citados, como exemplos, as posições de Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia (in: Leo Ferreira Leoncy et al., Comentários à Constituição do Brasil, p. 1287); Bernardo Gonçalves Fernandes (Curso de Direito Constitucional, p. 900), Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (Curso de Direito Constitucional, p. 956) e Alexandre de Moraes (Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, p. 1263). Como se vê, a doutrina praticamente unânime reafirma que a lista de bens jurídicos protegida pelos tipos do art. 85 da CF é meramente exemplificativa. Nada há de ilícito, portanto, na especificação de um novo tipo pelo legislador ordinário, como ocorreu com o art. 11. Aliás, esse argumento levaria a conclusões absurdas: o legislador, a quem cabe exclusivamente tipificar os crimes, pois se trata de hipótese de reserva legal, não teria o poder de tipificar nenhuma conduta, a não ser as expressamente previstas na Constituição?”
[2] STRECK, Lenio Luiz; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade; BAHIA, Alexandre. Comentário ao artigo 85 In: CANOTILHO, JJ Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1285 a 1287.
[3] Disponível em http://emporiododireito.com.br/professores-estudantes-e-servidores-da-faculdade-de-direito-da-ufmg-escrevem-carta-aberta-ao-senador-anastasia/
[4] Parecer disponível em https://cloudup.com/ig-cUkufb7N
[5] Ver o artigo disponível em http://emporiododireito.com.br/o-erro-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia-pode-anular-o-impeachment-por-alexandre-morais-da-rosa/
[6] Sobre o tema, afirma Lenio Streck: “As regras de interpretação – sobre as quais não existe uma taxonomia – apontam para algumas questões básicas: quando se trata de Direito Penal, não pode haver analogia in malam partem. E quando está em jogo a coisa mais sagrada da democracia – que é a vontade do povo — também não se podem fazer pan-hermeneutismos, a partir de analogias e/ou interpretações extensivas. Parece-me que qualquer interpretação sempre deverá ser indubio pro populo. In dubio pro vontade popular.” (Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-ago-24/lenio-streck-constituicao-impeachment-mandato-anterior).
Ver também os diversos artigos publicados em http://emporiododireito.com.br/category/constituicao-e-democracia/ sobre o tema do impeachment, especialmente, o artigo “Golpe Vergonhoso passa na Câmara”, disponível em http://emporiododireito.com.br/golpe-vergonhoso-passa/ , bem como a obra BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; BACHA E SILVA, Diogo; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O Impeachment e o Supremo Tribunal Federal: História e Teoria Constitucional Brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[7] Ver o artigo disponível em http://emporiododireito.com.br/o-erro-do-parecer-do-senador-antonio-anastasia-pode-anular-o-impeachment-por-alexandre-morais-da-rosa/
[8] Ver a manifestação de Ricardo Lodi, assim como a de Geraldo Prado e Marcello Lavenère, disponível em http://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2016/05/juristas-dizem-que-dilma-nao-cometeu-crime-de-responsabilidade.
Também http://www.conjur.com.br/2015-dez-04/ricardo-lodi-pedaladas-hermeneuticas-pedido-impeachment.
Alexandre Bahia é doutor e mestre em Direito pela UFMG, professor da UFOP e do IBMEC.
Lenio Luiz Streck é professor da Unisinos e Unesa; doutor e pós-doutor em Direito, ex-procurador de Justiça e Advogado..
Marcelo Cattoni é doutor em Direito e professor associado da Faculdade de Direito da UFMG.