A edição da última quarta-feira (13) do jornal francês Le Monde volta a tratar da situação política no Brasil. Publicados lado a lado, artigos do presidente interino Michel Temer e do professor e brasilianista Laurent Vidal traçam dois quadros completamente distintos do País que, em menos de um mês, receberá delegações e governantes de todo o mundo durante os Jogos Olímpicos.
Temer tenta passar a ideia de que tudo corre às mil maravilhas, seja no plano da preparação para os jogos — tocada por prefeito e um governador de seu partido — seja no plano político. “A democracia brasileira está consolidada”, afirma o homem que se senta provisoriamente na cadeira de Dilma Rousseff. Já Laurent Vidal é implacável: “A destituição de Dilma Rousseff remete à forma clássica de golpe de Estado”, afirma o historiador e professor da Universidade de La Rochelle.
Em seu artigo, Vidal traça a trajetória histórica da expressão “golpe de Estado” para concluir que todos os elementos clássicos de um golpe — a encenação, os pretextos e os estratagemas — estão presentes no processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff.
Leia uma tradução livre do artigo de Laurent Vidal:
A pantomima olímpica oculta a tragédia política – Por Laurent Vidal (Le Monde)
Em Brasília, a destituição de Dilma Rousseff resgata a forma clássica de golpe de Estado. O golpe recorre à encenação e prescinde do uso da violência. Os Jogos Olímpicos servem à impressão de “final feliz”
Ao inaugurar, no último 5 de julho, a Vila Olímpica do Rio, o presidente em exercício do Brasil, Michel Temer, fez um apelo à “pacificação do País”, além de sustentar que esses jogos “apresentam ao mundo uma Nação onde a democracia está consolidada”. O espetáculo das Olimpíadas se prestará a acalmar uma nação ferida?
A pergunta é pertinente, no momento em que Dilma Rousseff e seus apoiadores buscam uma segunda chance, enquanto repetem incansavelmente que seu afastamento provisório nada mais é que um golpe de Estado.
O uso dessa expressão pode soar estranho, já que o processo respeitou, passo a passo, o prescrito na Constituição e recebeu aval do Supremo Tribunal Federal. Isso inclusive levou Le Monde a publicar um editorial categórico, no último 30 de março: “Não é golpe de Estado”. É verdade que diante dos golpes de Estado registrados na Europa e na América Latina nos séculos 19 e 20, a imagem fixada de um golpe é a da conquista do poder por uma ação violenta e por meios ilegais, geralmente, inconstitucionais, cuja caricatura está descrita em Tintin et les Picaros.
O que está acontecendo no Brasil não é sequer comparável a essa imagem.
Le Monde poderia ainda repetir, com justiça, que o que acontece agora nada tem a ver com as ditaduras militares apoiadas pela CIA. Mas será que isso encerra o debate sobre o tema? Não, muito pelo contrário.
Mas, antes disso, vamos voltar um pouco na História para compreender a origem da expressão “golpe de Estado”. Registrada em 1598 como definição de “ação política útil ao bem do Estado”, a expressão é contemporânea do advento das monarquias modernas. Em 1639, o bibliotecário Gabriel Naudé (1600- 1653) escreveu as Considérations Politiques sur les Coups d’Etat (considerações Políticas sobre Golpes de Estado). Ele associa o termo às “ações ousadas e excepcionais que os príncipes são obrigados a implementar diante de situações difíceis e desesperadas, contra o direito natural”.
Essas ações se justificariam em uma “prudência extraordinária”, que priorizaria a manutenção da integridade do Estado e deveriam ser desfechadas rápida e sigilosamente. Ao evocar “as precauções e as ocasiões que comportam o golpe de Estado”, Naudé não se esquece de destacar o uso de “certos estratagemas e desvios dos quais se serviram e se servem, sempre, para alcançar suas pretensões”.
Em 1684 o acadêmico Antoine de Furetière (1619-1688) incorpora a expressão a seu dicionário, com o significado, agora, de “ação heroica, ousada e excepcional, para o bem ou para o mal” e dá como exemplo “a tomada de La Rochelle”.
O mesmo cardeal Richelieu, responsável por organizar o cerco e a tomada de La Rochelle, em 1628, seria o personagem principal da Jornada de Dupes (1630), quando uma disputa política digna de enredo de vaudeville culminou com o rei Luís XIII afastando todos os inimigos e detratores de seu ministro Richelieu, entre eles a rainha-mãe, Maria de Médicis, condenada ao exílio. O cardeal passou a ser o único encarregado de conduzir os assuntos do reino. No Século 17, o golpe de Estado é uma trama teatral, uma teatralização do poder.
A tragédia do Grand Siècle
É sob essa luz que devemos analisar o que acontece agora no Brasil, onde encontramos todos os ingredientes de uma tragédia do Grand Siècle (o Século 17, considerado época de ouro da História da França).
A dramatização, iniciada pelos textos e imagens que a grande imprensa (Globo e Veja, especialmente) usaram, a partir da reeleição de Dilma Rousseff (2014) para traçar o retrato de um país entregue a um partido populista e corrupto, sob um modelo arcaico de desenvolvimento que manietava a economia enquanto distribuía generosamente bolsas e direitos sociais aos muito pobres.
Entra então em cena o argumento da “prudência extraordinária”, para justificar, em nome do interesse maior do País, a deposição do partido que dilapidou a riqueza nacional. Não falta, também, o estratagema, já que os argumentos apresentados no processo de impeachment passam longe de expressar as razões profundas dessa iniciativa. O “crime de responsabilidade” que deve estar caracterizado para ensejar esse tipo de processo, teria que ter sido cometido no mandato em curso. O primeiro pedido de impeachment contra Dilma foi apresentado apenas um mês e meio após sua reeleição.
Entra em cena, enfim, o segredo: a divulgação recente de conversas grampeadas dos principais caciques do PMDB — antigo aliado do PT e hoje à frente dos principais postos de poder no Brasil — revela a intenção de encerrar as investigações sobre a corrupção para evitar a implosão do sistema. Nessas gravações, o ex-presidente da República José Sarney afirma “a classe política está arruinada. É o salve-se quem puder”.
O que está em curso no Brasil é o ressurgimento de uma forma clássica de golpe. E como o dramaturgo Corneille (1606-1684), pode-se dizer deste esquema político de fôlego curto: “Jamais um golpe de Estado foi melhor realizado” (A Morte de Pompeu ).
Cyntia Campos, com informações do Le Monde