A democracia no mundo tem nos trazido mostras de que ainda respira e busca remédios contra a barbárie. Depois da impactante demonstração da amplíssima maioria do povo chileno no último dia 25 de outubro, de demanda por uma nova constituição que substitua a atual, da época da ditadura de Augusto Pinochet, vivemos na semana que se encerrou processos que injetam ânimo naqueles que acreditam na possibilidade virtuosa de viver sem a ameaça da vocação autoritária dentro da estrutura do Estado.
A derrota de Donald Trump na eleição presidencial nos Estados Unidos por certo não possui o significado de mudança de postura daquele país na sua relação com os Estados-nação que estão sob sua influência geopolítica. Não há diferença entre republicanos e democratas no sentido de que os Estados Unidos devem exercer sua hegemonia mundial.
Alguns analistas chegam a pregar que o partido de Joe Biden, que se sagrou vitorioso, tem melhor capacidade de impor sua agenda na política internacional, e mais disposição para punir os governos que porventura se recusem a aceitar, ou se desviem das regras submissas de seu funcionamento.
Tudo isso se dá, no entanto, nos campos econômico e social.
No caso de Donald Trump, personagem extremamente populista, autoritário e xenófobo, ele representa as posições da extrema direita, com características neofascistas, recheadas por um supremacismo branco, rejeição aos direitos civis de minorias sociais, mulheres, LGBTQIA+, desprezo pelos imigrantes, insensibilidade diante do sofrimento do próprio povo, políticas de negação à pandemia e questões ambientais, estímulo à violência policial, tratamento a adversários como inimigos, estimulando o ódio entre as pessoas.
Por tudo isso sua derrota possui um significado que importa ao mundo civilizado.
Exatamente um ano após o golpe civil-militar que forçou a renúncia e exilou o ex-presidente Evo Morales, Luis Arce, seu ex-ministro da economia, tomou posse como presidente eleito da Bolívia no domingo (8).
A volta ao poder do Movimento pelo Socialismo (MAS) e o retorno do ex-presidente Morales em caravana no dia seguinte à posse faz uma reparação histórica e recoloca a Bolívia no caminho da representação legal e legítima, após uma vitória nas urnas por esmagadora maioria, e reinaugura um tempo de refazer as políticas públicas para os menos favorecidos.
Leia também: Retorno do MAS abre caminho para apuração dos crimes do governo golpista da Bolívia
Vivemos hoje em uma dimensão paradoxal da política. Do ponto onde enxergo o mundo é preciso, além de nos alegrar com o momento, enxergar além dele, tanto para trás como adiante. Isso porque os países que derrotaram os extremistas de direita nas urnas saem delas divididos e polarizados.
Nos Estados Unidos, na Bolívia, assim como no Brasil – e creio que no mundo – subestimamos a capacidade da extrema direita de voltar ao poder, seja por meio do voto popular, seja por golpes sem resistências de massa.
Enfraquecer as instituições do Estado democrático de direito e investir contra a pluralidade são ações que fazem parte do projeto populista de inspiração fascista
É possível dizer, sem muito aprofundamento, que maximizamos a capacidade auto sustentável da democracia. Supomos que seus pilares seriam suficientes para que determinados discursos e bandeiras não mais tivessem lugar. O preço a pagar tem sido muito caro.
A ascensão ao poder de líderes populistas com características fascistas como Rodrigo Duterte, nas Filipinas, Recep Tayyip Erdo?an, na Turquia, Viktor Orbán na Hungria, além de Trump e Jair Bolsonaro, são mostras mais que evidentes de que há um descrédito com a democracia e suas instituições.
Enfraquecer as instituições do Estado democrático de direito e investir contra a pluralidade são ações que fazem parte do projeto populista de inspiração fascista. É um jogo de eliminação do “inimigo”, para que não haja limitação institucional nem senso crítico à pauta autoritária.
Esse é o passado recente, ou o presente. À frente as lições do mundo devem servir para aguçar nossa consciência de que os desafios são imensos e variados, que exigem mudança de postura e de linguagem. A disputa dos processos eleitorais não pode mais ser vista como um fim em si mesma, senão como uma parte da imensa batalha, uma etapa tática em que buscamos a ocupação de cargos dentro da institucionalidade.
A verdadeira “guerra” se dá muito acima das superfícies, seja nas igrejas, nas escolas e faculdades, nos condomínios, nos bairros, nas ruas, em todos os espaços. Disputar o apoio da população a uma agenda transformadora, de forma a subtrair legitimidade social do projeto neofascista. Competir no campo das ideias a concepção de mundo. Traduzir na prática o que Gramsci chamava de “disputa de hegemonia”. O que também tornará possível explicar possíveis saídas da elite em escolhas mais “limpinhas e perfumadas”, em que Moros e Hucks aparecem como diferentes.
A história dos avanços da humanidade é contada pelas resistências. Em todo o mundo, de agora e até sempre, o alerta deve permanecer, na compreensão que a luta democrática é perene, e que manter o horizonte sombrio distante depende de nossas ações cotidianas. Nada está dado ou é permanente se não for atualizado e alimentado.
No nosso país, que torce para ser amanhã a Bolívia de hoje, para ter uma oportunidade de retomar o caminho dos direitos e da melhor distribuição de renda, o desafio para uma perspectiva democrática requer uma reforma das instituições, sobretudo com criação de sistemas de controle efetivos.
Na proposta do processo de reconstrução dos direitos, a experiência real exige repensar o modelo da estrutura do Estado no que tange ao sistema de justiça, por exemplo, cujo uso indevido tem sido fio condutor ou auxiliar das mazelas contemporâneas.
Aprender com a História e seguir. O caminho é longo mas não é reto. É cheio de percalços, falsos atalhos e armadilhas. E como diz Emicida: “Tudo que nóis tem é nóis”. A partida é agora.
Artigo originalmente publicado no Brasil de Fato